terça-feira, 30 de junho de 2009

O TEXTO NÃO ESCRITO

Esta imagem foi capturada ao acaso em minhas "itinerâncias" de domingo, na residência de meu amigo Raul Tabajara.
Folhas de papel em dupla, ao vento, à espera de palavras. Caneta Bic à espreita, como que exigindo que a sombra se vá e provoque a poesia.

Divino São José


Homenagem à minha querida amiga Geórgia Marques, artista plástica. Esta é uma das composições que farão parte do novo trabalho do Grupo Pilão.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

QUEM MORRE VAI PRA CAIENA


Imagem disponível em http://www.img.mundi.com.br/
Dizem que depois que alguém “leva o farelo”, “bate as botas” ou “foi para a cidade dos pés-juntos” só tem um destino: Caiena.
Apesar de ter indagado várias pessoas sobre essa afirmação (que muita gente leva a sério), ninguém, ninguém mesmo soube me dizer o porquê. Nem o Paulinho Piloto que já foi lá tantas vezes ousou sequer inventar uma resposta.
Há, entretanto, uma versão um pouco aceitável, que é a de quem vai para lá nunca volta. É antiga: nossos emigrantes se mandavam para trabalhar na construção civil da base espacial de Kourou, se davam bem por lá e nunca mais retornavam. Uns ficavam e faziam suas carreiras como trabalhadores esforçados, e com o compromisso de apenas mandarem umas valiosas notas de franco para a família (na época não existia a união europeia e nem o euro). Outros, por não gostarem muito do pesado, acabavam ficando nas mãos dos gendarmes e consequentemente amargando uma pena nas prisões má afamadas do lugar, tipo Ilha do Diabo (que diga o seu Plancantã, pai do Waldir do Calçadão).
A maioria dos brasileiros que vai para lá vai se arriscando. São inúmeros os relatos dos que se aventuraram como clandestinos e acabaram ficando pelo meio do caminho. Perto de casa, quando criança, ouvia notícias de vizinhos que morreram afogados nas travessias do rio Oiapoque, em naufrágios de pequenas e frágeis embarcações. Todos eles eram muito pobres e tinham essa ideia fixa de ter um bom emprego e voltar com uma pequena fortuna para se restabelecer em Macapá. Lembro que uma dessas pessoas foi a Maria Lúcia, irmã da saudosa Maria Piçarra. A notícia de sua morte deixou consternados os moradores do Morro do Sapo, no Laguinho, mesmo assim, isso não inibiu o desejo de outros se aventurarem na mesma rota.
O engraçado é que Caiena é uma cidade aparentemente bonita, não tem problemas graves de trânsito e seu centro histórico é agradável aos olhos dos turistas, como a Place des Palmistes, o mercado de frutas, a área comercial, o porto e os prédios administrativos. Nada ali indica que é um inferno, ainda que como qualquer cidade cosmopolita tenha lá seus problemas sociais.
Mas se Caiena é a estação final de quem morre em Macapá, por que os caianenses não acham que quem morre lá vem para cá? Talvez o inferno daqui seja mais certo. Ninguém quer padecer depois da vida no Brasil, muito menos aqui em Macapá. Então parece ser mais cômodo “dar um jeitinho” brasileiro para ser condômino do paraíso de Caiena (com possibilidade de ser eleito síndico, comprando voto ou não) do que ficar com a alma vagando aqui, mesmo que o corpo esteja enterrado lá no “Barcelão”.
Recentemente, o Biluca, morador do Laguinho, se saiu com essa: disse que “todo mundo que viajava no avião francês (o airbus da Air France) foi pra Caiena, mas só quem se salvou foi o filho do compadre Sarambá”. Perguntado sobre isso ele afirmou que viu na televisão que encontraram, no mar, o rastro do “Querosene” (irmão do Sené e do Beím, que morrera uma semana antes do acidente do avião).
A expressão ”foi pra Caiena” ou “viajou pra Caiena”, é uma metonímia e um eufemismo, que serve para suavizar a rudeza da morte indesejável dos amigos e conhecidos. Mas como não tem jeito para ela nós vamos inventando maneiras de dribrá-la, e esta certamente é uma delas, afinal a morte representa o fim absoluto de qualquer coisa que existe de positivo, e simboliza tudo o que é perecível e destrutível da existência.
Mas se “ir pra Caiena” é morrer, é bom também lembrar que a morte significa libertar-se das preocupações e penas e que ela abre o acesso ao reino do espírito. Dizem que a morte suscita a necessidade de ir mais longe, pois ela é a condição para o progresso e para a vida.
Certa vez, lá em Caiena, participando de um desses festivais culturais, o Bomba D’água reconheceu um gari que varria a praça do centro da cidade. Era o Maiambuco, um amapaense que tinha saído de Macapá para a Guiana Francesa há mais de trinta anos e que ninguém mais sabia dele. Bomba D’água, também conhecido por Joaquim, chamou o Pavão, apontou com o dedo e disse: - Olha o Maiambuco lá! O Pavão ficou tremendo e meio amarelo de medo, quase não acreditando, mas exclamou: - É mesmo, Joaquim. É por isso que dizem que quem morre vem pra Caiena. Égua, vamo embora daqui.
(Texto publicado no Jornal "A Gazeta", de domingo 28/06/2009)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

RUMO AO PÓ DAS ESTRELAS


Como o silêncio é uma árvore dormindo e um oco à espera do desejo, expresso meu princípio e estratégia de beijar-te perante o fogo do amor e o som das palavras.
Não justifico esta vontade só pelo prazer de interpretar metáforas, pois tudo urge no rio em seu curso indômito, sobre o rosnar das águas que lhe arranham o dorso pétreo. É um compartilhamento perene de dons alimentados mutuamente depois de tantas estiagens e abruptas enchentes, desses vilipêndios que causamos pela nossa natureza, talvez humana.
Penso que um ciclo temporal da vida não satisfaz o beija-flor. Apesar da abundância de flores sequer ele dispensa primaveras.
O tempo abre caminhos que se estreitam ao sabor da gravidade. E os sulcos da epiderme onde outrora líquidos corriam, abrigam fótons de raios siderais e apenas lampejos de dores passadas.
O amor, então, não é fator de espanto, de risco ou substância para qualquer sobrevivência, antes é uma nítida energia que transforma as leis do tempo em furtivas estrelas.
Afirmo, pois, que o meu amor não é discurso que reduz insumos oriundos de sistemas prontos, não se mensura por linguagens de processos. Ele é fonte criadora, útil, nascida, morta e renascida da alquimia da alma, da música estelar que harmoniza a vida.
Eu beijo à reorientação do inesperado, porque o amor não colhe néctar diariamente nem se prende a primaveras ou solstícios invernais, é mais que uma tabela, uma equação, é a minha e a tua vontade em dois relógios atrasados na viagem que não planejamos ao rio, ao mar e às estrelas.
Eu conto com o cúmplice ardume do amor: a poesia. Eu trago a contemporaneidade do sonho: o pesadelo do futuro, o ambiente maltratado, a água impura. Eu vivo! Ora, eu canto a perplexidade da vida e a paradoxal ternura que há nesses caminhos que contigo andei e continuo andando, obstinado, rumo ao pó das estrelas.

O DISCURSO DISCRIMINADOR DO MARABAIXO

Não é de hoje que o marabaixo é discriminado. Aliás, as manifestações culturais de origem africana sempre foram vistas como ilegais ao longo da história do Brasil. Do samba à religião, seus promotores foram vítimas de denúncias que os boletins de ocorrências policiais e os processos judiciais relatam como vadiagem, prática de falsa medicina, curandeirismo e charlatanismo, entre outras acusações, muitas vezes com prisões e invasões de terreiros.
Essa discriminação ocorreu - e ainda ocorre - em contextos históricos e sociais diferenciados, e veio produzida por instituições que tinham o objetivo de combater o que lhes fosse ameaçador ou que achassem associadas às práticas diabólicas, ao crime e à contravenção.
No caso do marabaixo, há anos venho relatando episódios de confronto entre a igreja católica (e seus prepostos eclesiásticos e seculares), e os agentes populares do sagrado, estes que, por serem afrodescendentes, mestiços e principalmente por serem pobres, foram e são discriminados, visto o ranço estereotipado de que são “gente ignorante” e supersticiosa.
É do século XIX a influência do evolucionismo que tomava como modelo de religião “superior” o monoteísmo cristão e via as religiões de transe como formas “primitivas“ ou “atrasadas” de culto. Para Vagner Gonçalves da Silva (Revista Grandes Religiões nº 6), nesse tempo “religião” opunha-se a “magia” da mesma forma que as igrejas (instituições organizadas de religião) opunham-se às “seitas” (dissidências não institucionalizadas ou organizadas de culto).
É do século XIX também os primeiros escritos sobre o marabaixo. Em um deles um anônimo articulista o ataca, dizendo-se aliviado porque “afinal desapareceo o infernal folguedo, a dança diabola do Mar-Abaixo”. Ele afirma que “será uma felicidade, uma ventura, uma medida salutar aos órgãos acústicos se tal troamento não soar mais...”. Na sua narrativa preconceituosa vai mais além ao dizer que “Graças ao Divino Espírito-Santo, symbolo de nossa santa religião, que só exige a prática de bôas acções, não ouviremos os silvos das víboras que dansam ao som medonho dos gritos dos maracajás (...), que é suficiente a provocar doudice a qualquer indivíduo”. Assevera adiante “Que o Mar-Abaixo é indecente, é o foco das misérias, o centro da libertinagem, a causa segura da prostituição”. E finaliza conclamando “Que os paes de famílias, não devem consentir as suas filhas e esposas freqüentarem tão inconveniente e assustador espetáculo dessa dansa, oriunda dos Cafres”. (Jornal Pinsonia, 25 de junho de 1898).
Discursos de difamação do marabaixo como este e a posição em favor de sua extinção ocorreram seguidamente. O próprio padre Júlio Maria de Lombaerd quebrou a coroa de prata do Espírito Santo que estava na igreja de São José e mandou entregar os pedaços aos festeiros. O povo se revoltou e só não invadiu a casa padre para matá-lo graças á intervenção do intendente Teodoro Mendes.
Com a chegada do PIME – Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras - em Macapá (1948) o marabaixo sofreu um período de queda, mas suportado com tenacidade por Julião Ramos, que não o deixou morrer. Tiraram-lhe inclusive a fita da irmandade do Sagrado Coração de Jesus, da qual era sócio fiel.
Nesse período os padres diziam que o marabaixo era macumba, que era coisa ruim, e combatiam seus hábitos e crenças, tidos como hediondos e pecaminosos, do mesmo jeito que seus antecessores o fizeram no tempo da catequização dos índios. Mas o bispo dessa época, D. Aristides Piróvano, considerava Mestre Julião “um amigo” (Ver Canto, Fernando in “A Água Benta e o Diabo”. Fundecap, 1998).
O preconceito dos padres italianos com o marabaixo tem apoio num lastimável “achismo”. Os participantes são católicos e crêem nos santos do catolicismo, tanto que a festa é dedicada ao Divino Espírito Santo e à Santíssima Trindade e não a entidades e voduns como pensam. Nem ao menos há sincretismo nele.
E se assim fosse? Qual o problema? Antes de emitirem um julgamento subjetivo sobre um fato cultural é preciso conhecê-lo. É preciso ter ética. Ora, sabe-se que todos os sistemas religiosos baseiam-se em categorias do pensamento mágico. Uma missa ”comporta uma série de atos simbólicos ou operações mágicas” (Vagner Silva op. cit.). Observe-se as bênçãos, a transubstanciação da hóstia em corpo de Cristo, por exemplo. Um ritual de umbanda comporta a mesma coisa.
O marabaixo tem rituais próprios, ainda que um tanto diferentes. Por isso e apesar do preconceito ainda sobrevive. Valei-nos, Santo Negro Benedito!