domingo, 28 de fevereiro de 2010

A RUA E A BICICLETA

Publicado no jornal “A Gazeta” de domingo, 28/10/2009

orla_bicicleta Naquela rua a garotada andava livre e desatenta com suas bicicletas descascadas. Não havia a noção do perigo e a responsabilidade passava longe de todos. A gente circulava e voava contra o vento, descendo a ladeira e se exibindo para uma platéia quase inexistente.

A rua São José soltava piçarras em seu dorso naqueles dias de verão. Até um carro mal dirigido podia derrapar e ir direto para o bueiro que ficava no fundo da ladeira e conduzia as águas da maré para o antigo lago do Poço do Mato. Ali muita gente também caiu no período das chuvas, quando tentava se livrar dos profundos sulcos produzidos pelas águas pluviais no meio da rua. Um primo meu estreou sua bicicleta nova após o Natal com uma queda que lhe deixou marcas indeléveis pelo corpo. Meu pai desviou de um cachorro e caiu com sua merckswiss de dois varões no igarapé em frente à casa do seu Mobelino Lobato. O saudoso Edir Peres encostava o peito no guidon, abria os braços e descia a ladeira a toda velocidade. Mas um dia teve que parar para colocar o gesso no braço quebrado. Subir até o topo, na esquina com a Nações Unidas, era um ato de esforço e de satisfação, dada a condição íngreme da área. Era proeza que poucos adolescentes podiam realizar. E adultos também.

A paisagem macapaense é inconcebível sem a bicicleta: famílias inteiras se servem dela para as mais diversas atividades. E ainda é comum observar na periferia o pai pedalando, com o bebê na cadeirinha, a mulher na garupa segurando o filho menor com uma das mãos e na outra um guarda-chuva colorido da zona franca. O uso da bicicleta tornou-se comum porque nossa cidade é plana na maior parte do seu território. E também porque tudo era relativamente perto. Mas por ser tão comum, e tendo um bom valor, era um sonho de consumo de muita gente e objeto de desejo dos amigos do alheio. Tanto que as delegacias ficavam cheias de “charangas” e “maricotas” à espera de seus donos com as respectivas notas fiscais, quando a polícia desbaratava uma quadrilha de desmonte. Houve um tempo em que elas eram obrigadas a ter placas com numeração oficial, faróis, freios, campainhas e a obedecer ao Código de Trânsito Brasileiro, sob pena de pagar multas.

Inesquecível para mim é a silhueta de uma bicicleta com um casal de namorados na contraluz do sol poente. Inolvidável os grossos pingos das chuvas de verão batendo violentamente no peito na volta famélica do colégio perto do meio-dia. Mas todo esse romantismo se desfaz como fumaça ao vento forte quando a voz boleriana do rádio informa mais uma morte de um ciclista no trânsito. Imprudência, desatenção, ousadia? Culpa de quem? Como cidadão, tenho que saber as respostas e tentar contribuir para que isso não passe mais a acontecer. Mas fica um gosto de limão e sal na boca que só pode ser removido com uma boa dose de brisa na Beira-Rio.

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