sexta-feira, 19 de março de 2010

O RIO, O FORTE E A CIDADE

entorno_fortaleza (2) A cidade em festa se extasia diante da beleza do entorno do forte. É a Mairi dos Waiãmpi, revisitada num tempo espiralado, cíclico, onde Ianejar, o herói mítico, conduziu aquele povo para salvá-lo do infortúnio que o homem branco lhe causava. Mairi, a casa de barro que os livrou dos cataclismos de fogo e do dilúvio primordial, ainda causa espanto, pois ali permanece como uma estrela encravada num céu verde, molhada de mar. Permanece com seus olhos mirando o infinito, caçando corsários inexistentes, mas possíveis. Existe numa terna relação com o Rio dos Rios, sob a energia do equinócio que se alastra e que se acende, mas que não basta em si mesma para gerar mais sonhos.

fort1 A cidade se vincula mais e mais ao Rio dos Rios. E o contínuo embate da maré com o arrimo dos muros prova quem tem mais força. A fortaleza, entre a terra e a água, não parece se comprimir nesse combate. Nem quando a chuva e o sol lhe fustigam, ou lhe torram ou lhe molham por seguidas décadas, desde que escolhida foi para ser a sentinela, a guardiã da foz nos tempos da colônia, quando a cobiça era maior que o tamanho da Amazônia. Uns olhos miravam os olhos miradores abrigados nas guaritas, executando ordens e os mais legítimos gestos da conquista. No Rio dos Rios tralhotos maldiziam a cobiça e caruanas balançaram as turvas águas que de doce tinha só o gosto.

fortaleza002_reduzida Na trilha da história poucos contam dos castigos infindáveis, imputados a muitos. Nem falo do sangue dos revéis ensandecidos, do couro dos boçais encalcetados, da forca promovida pelo banzo, da dor que atravessava um oceano de lonjura até o Oriente - ali onde a amada talvez estivesse livre, amamentando um príncipe sem reino e povo. A história não só conta; a história dói porque observa a obra humana e sua conduta. Em nome de tão poucos homens de honra.

Ao homem cabe a construção de sua defesa e da intenção que uma aventura lhe carrega. Construir, porém, não é nada, se mãos não possuírem gestos e sombras não imitarem corpos. Ao sol do meio-dia, no entanto, almas nuas ficam sem sombra, e homens assombrados têm medos de seus próprios passos. Ora, mas estamos no equador, que é uma panela escaldante cheia dos temperos mais picantes onde se sabe que não há pecado em pecar demais. Não é castigo ser leão atroz, e devorar o sonho e estilhaçar quebrantos de vidas que miram apenas no vazio do horizonte. Porque não há horizonte, há um grande cemitério de mãos e pés que foram úteis.

fort2 O forte de Galúcio se desmorona em alegria. José, o santo carpinteiro, já não se assusta mais com os gritos dos que chegam ao caravançarai, o abrigo de Maria e do Menino que nascerá e fugirá do recenseamento de Herodes. Ambos, no entanto, estão presentes agora, ali nos baluartes, junto a todos que morreram em sacrifício, contemplando o rio e orgulhosos do trabalho que ajudaram a realizar.

 

Texto publicado no Jornal do Dia, em 2007. Faz parte da coletânea ADORADORES DO SOL – Novo textuário no meio do mundo.

Fotos: Arquivo de Fernando Canto

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