quarta-feira, 1 de setembro de 2010

De tão azul, sangra

Ray Cunha

AZUL DE DOER

Praça Zagury , anoitecendo.

O sabiá da minha quadra começa sua armadilha de amor às 4h30. Acordo, às 5 horas, com seu canto. Ligo o abajour do criado mudo, visto-me, ponho um casaco e vou ao banheiro. Depois vou para a cozinha e preparo café Três Corações, gourmet. Bebo três xícaras de fumegante arábica com leite em pó, pãezinhos com manteiga ou doces. Faço minhas orações. São 6 horas. Os pássaros fazem algazarra na fria manhã de inverno tropical de altitude.

Ao sair de casa dou de cara com nova rosa no meu jardim. É uma pequena rosa amarela que se banha, sem prestar atenção a mim, ao sol redentor. Namoro-a. Ela continua seu banho, alheia ao mundo. As rosas são assim mesmo, só se importam com o sol. Mas eu gostaria de continuar perto dela apenas para a amar. Contudo, só beija-flores, borboletas e, claro, o sol e a brisa a tocam as rosas. E também mulheres que amam.

Parece que Deus arrumou a manhã para mim. As mangueiras estão grávidas e no ar pairam risos de crianças e tênues cheiros que lembram mulher com Chanel número 5 e mar. Certa vez, sentou-se ao meu lado, no ônibus, uma menina. Teria 14 anos. Tinha o encanto que todas as meninas têm. Perguntou-me onde ficava tal lugar – queria descer ali. Sosseguei-a. Disse-lhe que a avisaria quando ela deveria descer. Passado um pouco, ela cochilou e encostou a cabeça no meu ombro. Olhei-a. Dormia como uma criança. Procurei não me mexer até o ponto em que ela deveria descer. Acordei-a. Ela despertou sorrindo, agradeceu e se foi. Tinha a indiferença das rosas, mas, como as rosas, deixou um rastro tênue de cheiros.

Depois do trabalho, de volta a casa, paro no Big Bar, na 311 Sul, e peço uma Bohemia. Sabe-me enevoada. O rio da tarde murmura. A tarde se evola, se dilui. Os flocos negros da noite começam a cair. O sol se põe e os sons da tarde vão dando lugar à noite. Uma mulher passa na calçada. É uma linda mulher, que enobrece mais ainda os murmúrios do anoitecer.

Lembro-me, de repente, do Walmir Botelho, que me ensinou a transitar nas esquinas tumultuadas das redações dos jornais. O Walmir Botelho é diretor de redação de O Liberal de Belém do Pará. Quando vou a Belém, tomo meu banho noturno bebendo Cerpinha, e depois continuo bebendo Cerpinha e vendo a cidade, lá embaixo, da janela do hotel. Em Goiânia, bebo Brahma; no Rio de Janeiro, chopp da Brahma; em Manaus, Antarctica. Bebi durante 40 anos e deixei de beber para valer em 2008, mas uma vez ou outra bebo vinho ou Bohemia, ou Cerpinha.

Vou para casa. Em casa, olho para a pilha dos livros que estou lendo. O primeiro deles é Da Minha Janela – Crônicas da política brasileira (LGE Editora, Brasília, 2010), do jornalista André Gustavo Stumpf. Vou resenhá-lo. Também preciso ler História Desagradáveis, de Gladstone Machado de Menezes (LGE Editora, Brasília, 2010). Estou lendo em casa A Bíblia de Jerusalém, que me foi recomendada por Erwin Von-Rommel, autor de 100 Segredos (Zennex Publishing, São Paulo, 2003). À noite, na cama, leio a Verdade da Vida, volume 3 (Seicho-No-Ie do Brasil, 1962), de Masaharu Taniguchi. Quando vou para o trabalho, leio O livro dos espíritos (Instituto de Difusão Espírita, São Paulo, 1984), de Allan Kardec.

Coloquei ainda na pilha O Pequeno Príncipe (Agir, Rio de Janeiro, 1987), de Saint Exupéry. Li-o há muito tempo. Depois o li novamente, agora para minha filha, Iasmim, quando minha princesinha era um bebê. Lembro-me dos grandes olhos negros da Iasmim pousados em mim enquanto lia o livro, e nas ilustrações. Foi aí que comecei a chamar para minha princesinha de “meu bem”. E também foi Exupéry que me despertou para as coisas que não vemos com os olhos físicos, mas apenas com o coração.

Ao chegar em casa, vejo que chegaram dois volumes pelos Correios. Abro-os. Um é para eu entregar para o Joy Edson (José Edson dos Santos); o outro é para mim. Trata-se de Adoradores do Sol – Novo textuário do meio do mundo (Scortecci, São Paulo, 2010), de Fernando Canto. Fernando Canto é o escritor que melhor representa Macapá, a cidade que fica na esquina do maior rio do mundo, o Amazonas, com a Linha Imaginária do Equador. Macapá fica no mundo das águas, a meio caminho do Caribe e da Hileia. Vou mergulhar no texto de Fernando Canto, pois estou há muito tempo em Brasília.

A noite lá fora é azul escuro, tão azul que sangra.

Brasília, 23 de agosto de 2010

3 comentários:

  1. Belo conto. As rosas falam com os perfumes que exalam ...
    Parabéns Ray

    ResponderExcluir
  2. Ray representa o imaginário lírico-poético-fantástico da literatura amazônica na região do cerrado, lugar onde reside há mais de20 anos.
    Sem dúvida, parabéns!

    ResponderExcluir
  3. ENORMEMENTE BOM.EXCELENTE A FLUIDEZ DAS PALAVRAS, O COLOQUIO DO COTIDIANO EM SUA ROTINA. E A PRESENÇA NO CONTO DE UM TURBILHÃO DE UNIVERSALIDADES REPRESENTADAS NAS LEITURAS E TITULOS CITADOS.POR FIM A FOTOGRAFIA E O REPOSICIONAMENTO DE FATOS CORRIQUEIROS, PINÇADOS COM ARTE, DA ROTINA DIARIA DO ESCRITOR, ARREMATANDO TUDO ISSO COM A FRAGMENTAÇÃO INTENCIONAL PROVOCADA PELO FATO DA CHEGADA DE UM LIVRO
    ORIUNDO DE OUTRO EXCELENTE REPRESENTANTE DA FAUNA AMAZONICA DE "FERAS", QUE PENSAM E PRODUZEM, TEXTOS E JOIAS.
    BELISSIMO AMBOS.
    ABRAÇOS. LUIZ JORGE.

    ResponderExcluir

Obrigado por emitir sua opinião.