segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Da arte e do prazer de escrever

Por Frei Beto

escrever Escrevi ao longo dos últimos 27 anos. Alem de prosseguir no trabalho de textos longos, redijo dois ou três artigos jornalísticos por semana. E... por que escrevo? Trago uma multiplicidade de hipóteses não excludentes.

Escrevo para construir minha própria identidade. Tivesse sido criado por lobos, será que eu me sentiria lobo no mundo? A identidade é também reflexo de um jogo de espelhos. Se pais e mestres me tivessem incutido que sou tapado para as letras, e não me restasse outra alternativa senão trabalhar no fundo de minas, talvez hoje – se houvesse sobrevivido – eu fosse um mineiro aposentado.

Minha experiência, porem, foi diferente. Os espelhos reluziram em outras direções. Já trazia um mim o fator filogenético. Meu pai escreve crônicas. Minha mãe publicou seis livros de culinária. O gato da casa não escreve; mas pelo jeito, gosta de ler, a julgar pelo modo como se enrosca em jornais e revistas.

Veio, então, o fato ontogenético. Segundo ano primário, Grupo Escolar Barão do Rio Branco, Belo horizonte. Dona Dercy Passos, que me ensinou o código alfabético, entra na classe sobraçando nossas composições. (Bonito: composição. Promove a escrita a nível de arte poética e musical.) A professora indaga aos alunos: “Por que não fazem como o Carlos Alberto? Ele não pede aos pais para redigirem suas composições”. A palavra elogiosa pinçou-me do anonimato, inflou o meu ego, trouxe-me um pouco mais de segurança na tarefa redacional.

Textos Mágicos

Tornei-me ávido leitor. Monteiro Lobato, coleção “Terramaear”, o “Tesouro da juventude”. Não lia com a cabeça, e sim com os olhos. O texto se fazia espelho e eu via meu próprio rosto no lugar do perfil anônimo do autor. Mais do que conteúdo, encantavam-me a sintaxe, o modo de construir uma oração, a força dos verbos, a riqueza das expressões, a magia de encontrar o vocábulo certo para o lugar exato.

Primeira série ginasial, Colégio Dom Silvério, dos irmãos maristas, Belo horizonte. Irmão José Henriques Pereira, professor de Português, aguarda-me à saída da aula. Chama-me à parte e sentencia: “Você só não será escritor se não quiser”.

Escrevo para lapidar esteticamente as estranhas forças que emanam do meu inconsciente. Aos poucos fui descobrindo que nada meda mais prazer na vida do que escrever. Condenado a fazê-lo, tiraria de letra a prisão perpétua, desde que pudesse produzir meus textos. Aos candidatos a escritor, dou este critério: se consegue ser feliz sem escrever, talvez sua vocação seja outra. Um verdadeiro escritor já,ais será feliz fora deste ofício.

Escrevo para ser feliz. Batheanamente, para ter prazer. Sabor do prazer. Tanto que, uma vez publicado, o texto já não me pertence. É como um filho que atingiu a maioridade e saiu de casa. Já não tenho domínio sobre ele. Ao contrário, são os leitores que passam a ter domínio sobre o autor. Nesse sentido, toda escritura é uma oblação, algo que se oferta aos outros. Oferenda narcísica de quem busca superar a devastação da morte. O texto eterniza o seu autor.

Escrevo também para sublimar minha pulsão e dar voz à babel que me povoa internamente. A literatura é o avesso da psicanálise. Quem vai ao divã é o leitor-analista. Deitado ou recostado, ouve nossas confidências, decifra nossos sonhos, desenha nosso perfil, apreende nossos anjos e demônios. Por isso, assim como os psicanalistas evitam relações de amizade com seus pacientes, prefito manter-me distante dos leitores. Não sou a obra que faço. Ela é melhor do que eu. No entanto, revela-me com uma transparência que jamais alcanço na conversa pessoal. Tenho medo do olhar canibal dos leitores, como se a minha pessoa pudesse corresponder às fantasias que forjam a partir da leitura de meus textos. Tenho medo também da minha própria fragilidade.

O texto tece o tecido da minha couraça. Com ele me visto, nele me abrigo e agasalho. É meu ninho encantado. Privilegiado do qual contemplo o mundo. Dali posso ajustar as lentes do código alfabético para falar de religião e política, de artes e ciências, de amor e dor. Recrio o mundo. Por isso, escrever exige um certo distanciamento.

Deveria haver mosteiros nas montanhas onde os escritores pudessem se refugiar para criar. Não posso exercer meu ofício têxtil cercado de interrupções, como idas e vindas, reuniões etc. Concordo com João Ubaldo Ribeiro quando ele afirma: “Escrever, para mim, é um ato íntimo, tão íntimo que não acerto escrever na frente de ninguém, a não ser em redação de jornal, que é como sauna, onde todo mundo está nu e não repara na nudez alheia”(Folha de S .Paulo de 19/04/92).

Loucos e vaidosos

“Escrevo por vaidade”, confessava o poeta Augusto Frederico Schmidt. Em geral, os escritores são insuportavelmente vaidosos. Tanto que chegam a criar academias literárias para se autoconcederem o título de “imortais”. Ali, a maioria sobrevive às próprias obras. Qual o autor que não atribui ao que escreve uma importância superlativa? Se o livro não vira best-seller e não é elogiado pela crítica, o autor culpa o editor, a distribuidora, o preconceito da mídia, as “panelinhas” literárias das metrópoles. Ora, alguém conhece uma obra de indiscutível valor literário que tenha sido olvidada por ter sido impressa na gráfica do município de Caixa Prego? O que tem valor, cedo ou tarde, se impõe. O que não tem, ainda que catapultado às alturas pelos novos e milionários recursos mercadológicos, não perdura. O bom texto é aquele que deixa saudade na boca da alma. Vontade de lê-lo de novo.

Todo texto, entretanto, depende do contexto. Por isso, dois leitores têm diferentes apreciações do mesmo livro. Cada um lê a partir de seu contexto. A cabeça pensa onde os pés pisam. O contexto fornece a ótica que penetra mais ou menos na riqueza do texto. Um alemão tem mais condições de usufruir de um Goethe do que um brasileiro. Este, por sua vez, ganha do alemão na incursão pelos sertões e veredas de Guimarães Rosa. Do meu contexto leio o texto e extraio, para a minha vida, o pretexto.

Escrevo em computador. Quando busco um tratamento estético mais apurado, faço-o à mão. Hemingway escrevia de pé. Kipling, com tinta preta, em blocos de folhas azuis com margens brancas, feitos especialmente para ele. Henry James fazia esboço de cena por cena antes de iniciar um romance. Faulkner dizia “ouvir vozes”. Dorothy Parker confessava: “Não consigo escrever cinco palavras sem que modifique sete”. Escrever é cortar palavras é modificar frases.

Escrevo para ganhar dinheiro. Livro dá dinheiro como a loto: para uns poucos. Neste país de analfabetos, cujos alfabetizados não têm o hábito da leitura, e onde as pequenas tiragens editoriais encarecem o custo do produto, viver de direitos autorais é privilégio de um Jorge Amado e de um Paulo Coelho. Meu também, guardadas as proporções. Porque tenho muitos livros, destinados a diferentes segmentos de leitores e, como religioso e celibatário, um custo de vida relativamente reduzido. Tivesse família, seria difícil viver dos direitos autorais. Envio meus artigos semanais a cerca de vinte jornais e revistas. Só dois pagam. Os demais, nem os serviços de correio fax/telefone.

Escrevo, enfim, para extravasar meu “sentimento de mundo”, na expressão de Drummond. Tentar dizer o indizível, descrever o mistério e exercer, como artista, minha vocação de clone de Deus. Só sei apreender este peixe sutil e indomável – o real – através da escrita. É minha forma de oração. (Fonte: Revista Imprensa, Mar/1996)

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