segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Lívia Cafusa

bogea J. Arthur Bógea 1941V2007

          Esta mulher, Lívia Cafusa, sem sobrenome, como referência apenas a cor da pele, é a imagem da história do Amapá, perdida entre muitas histórias, absolutamente secundárias, em registros antigos. Ninguém sabe que “Lívia Cafusa solteira a qual veio do Maranhão e se chama degredada atualmente no Macapá pôr mal prontidas” [procedimento] faz parte da história maior.
          Um pequeno registro sobre Lívia se encontra no livro da segunda visitação do santo ofício da inquisição ao estado do Grão-Pará – visita que se estende de 1763 a 1769. É citada na denunciação de uma certa Maria Fructuosa. “Aos quatro dias do mês de 1763 anos em a cidade do Pará e hospício de São Boaventura em que [fica] esta mesa da visita e aposentado o Sr. Inquisitor Geraldo José de Abranches visitador deste estado aí mando perante si uma mulher que da sala pediu audiência e sendo presente por dizer [que] a pedira para denunciar o que sabia [...] pôr descargo de sua consciência [...]. E logo disse chamar-se Maria Fructuosa da Silva solteira mulata livre natural”.
          Maria Fructuosa arrola Lívia na confissão, pôr ter aprendido do “denunciado índio Domingos de Souza uma oração ‘mágico religiosa’”. A oração diz: “Meu São Cipriano pela vossa santidade da minha virgindade que quero que me tragas o fulano, sem poder estar nem sossegar sem comigo vir falar”. A prece deve ser feita enquanto se traça uma cruz no chão com o pé esquerdo.
          Lívia vem procurar junto ao feiticeiro a reconciliação junto com o homem que ama. É dominada pela paixão – só isso. A paixão, esse sentimento que também tem história carregada de mortes e tragédias. Lívia apenas isso, quer seu homem de volta. Passa a ser vítima da inquisição.
          A inquisição é criada nos fins do século XII para combater as heresias que surgem na Europa. Com o tempo passa a se preocupar, também com judeus, prostitutas, homossexuais e feiticeiros. Para todos é certa a condenação: o isolamento social, a maldição até a terceira geração, o uso da veste do sambenito que denuncia pôr que “crime” a pessoa é condenada – isto para os que escapam das prisões ou que enviados para a fogueira com que inquisidores, neros católicos, iluminaram o mundo, não apenas Roma. O Santo ofício continua atuante com outro nome, Sagrada Congregação para a Defesa da Fé. Já não queima mais os condenados, o castigo é o “silêncio obsequioso” como o que atinge Leonardo Boff.
          Milhões de pessoas perecem em nome de Deus por onde as armas portuguesas e espanholas estendem “a fé e o império”. Lívia Cafusa é apenas uma referência, não é presa nem torturada, mas está morta para história dos povos, como muitas outras pessoas que são ignoradas pelos livros e escolas - a condenação ao fogo dos tempos que queima em silêncio.
          O Amapá tem uma história que precisa ser desvelada, igual a história de Lívia Cafusa. (Publicado no jornal Feira Maluca. Ed. 03 a 15.09.97)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por emitir sua opinião.