quarta-feira, 22 de junho de 2011

Adeus, Fernando

Crônica de AGILDO MONTEIRO (1992 *)

Ainda tenho dúvidas se nos últimos encontros ele me reconhecia. Do alto do seu olhar de pirata ou de pequeno Deus, que nos derradeiros momentos se considerava, as pessoas ficavam inquietas ou cheias da compaixão. Não baixava o olhar mesmo quando estendia a mão à caridade pública.

Ele que falava tantas línguas já quase não falava a sua própria em alto e bom som. Lembro que na faculdade Fernando conseguira tirar dez o ano todo em Direito Constitucional. Dentro de sua fantasia, talvez tenha pensado em escrever um tratado constitucional para redimir a pálida Constituição cambaleante dos seus últimos dias, até desembocar na de cinco de outubro de mil novecentos e oitenta e oito, tão colcha de retalhos; tão precisada de suas mãos para procurar os altos destinos para o povo brasileiro.

Pelo comportamento que assumiu nos últimos anos, dava para ver que não se interessava por mais nada. Somente por uns trocados que possibilitasse comprar um sorvete na esquina, caminhando depois alegre e despreocupado para saboreá-lo em cima de um capô de carro.

Não mostrava mais seus versos, suas músicas, seu caderno cheio de sabedoria para os amigos, para pessoas estranhas. Talvez tenha adquirido a certeza de que nada mais podia fazer para salvar a humanidade a não ser chupar mangas e olhar os dias nascendo nesta cidade dos verdes.

Fernando que foi bancário, poeta, pintor, poliglota, aluno de Direito, aluno de Medicina, professor, compositor – que não foi Fernando Lúcio Coelho de Miranda? -, passou a ser personagem folclórica na cidade. Era imprevisível: ora se encontrava no fórum; nas escadarias da Justiça do Trabalho, ou passeando na Avenida Presidente Vargas, desafiando a brisa que sopra da Baía do Guajará, ou vendo moinhos de vento na Praça da República, como um novo Quixote.

Julgava que Fernando fosse ter um vida mais longa e atormentada por milhões de fantasmas que deviam surgir de todos os cantos de Belém, como um outro Edgar A. Poe, cheio de gênio e de tóxico. De repente, entretanto, desapareceu vítima da violência e da brutalidade, despertando em cada pessoa uma lembrança ou uma história.

Poucos sabiam que ele costumava comer mangas embaixo de uma mangueira na Praça Brasil, onde lá mesmo apanhava os frutos e os saboreava na gratuidade da natureza. Alvo perigoso, a mangueira ficava bem na encruzilhada na antiga Praça do Índio. A praça antiga dos velhos e grandes carnavais. La ficava Fernando, sereno, na sua labuta cotidiana durante a temporada das mangas, dádiva das mangueiras espalhadas por toda cidade.

A pancada foi tão violenta contra a mangueira que durante muito tempo, e até hoje, manifesta a ferida na arvore causada pelo veiculo tresloucado.

Naquele dia ele acordou quando a manhã nascia porque, segundo dissera, era o melhor momento para colher os frutos, quando sua vida foi colhida tão violentamente que até decepou um de seus pés.

Confesso, amigos, que não sabiam que o Fernando Lúcio era o Fernando Arara, talvez seja a minha mania de não chamar ninguém por apelido. Pensando bem, acho que ninguém mais podia ser Arara do que o Fernando. Carregando mil cores nos olhos, na cabeça, nas ideias. Arara de mil cores de nossa Amazônia.

Com a morte de Fernando nós ficamos mais preto e branco, mais empobrecidos, menos poeta, menos pintor.

Adeus, Fernando.

(*) AGILDO MONTEIRO é escritor e advogado com intensa atividade forense trabalhista. Autor dos livros ‘Assassinato a Bordo’, ‘ Os Ratos D’Água’, ‘As Paisagens Mortas’, ‘O Peixe’, ‘O Ponto Z’ e ‘A Verde Rã’. ‘Um Animal Muito Estranho’, entre outros.

6 comentários:

  1. Belo texto. Fantástico, aliás. Eu conheci o Fernando, pelo lado da medicina. Andava a esmo pelo "matadouro" com seu violão em punho a interpretar Bob Dylan. isso era nos idos de 1980, quando estudava na antiga faculdade de medicina, hoje Instituto de Ciências da Saúde. Matadouro era um espaço na faculdade onde se discutia metade ciência, metade arte, metade estripulia. Nesse universo de um e meio, Fernando nos acudia com seu Blowing in the Wind. Sem as cores do Arara, o matadouro também ficou sem vento e ventania. Sem sopro de uma figura inesquecível, mas que representa, pelo seu texto, a manga de Newton que substitui a maçã. Só não precisava cair na cabeça dessa ave rara e multicolorida. Bela lembrança. Belo texto.
    Roger Normando, médico.

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  2. Essa crônica do escritor manauara/ paraora Agildo ficou em terceiro lugar no concurso CATA de literatura. Para mim é um texto irretocável pelo estilo. O tema é tão interessante como a personagem, que adornava Belém como suas cores de pássaro. O remember é uma homenagem a ele e ao meu amigo Fernando Coelho Bedran, primo dele. O Fernando Arara era filho da festejada escritora paraense (que morava em Lille-França)Lindanor Celina ("Estrada do Tempo-Foi"), grande amiga do professor Antonio Munhoz Lopes.

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  3. Amigo Fernando Canto muito obrigado pela bela homenagem ao meu amado e inesquecivel primo,particulamente sou eternamente grato pela insistencia do Fernando Lúcio junto a sua Tia Laudi minha mãe para ter o seu nome,alem disso herdei muitas coisas maravilhosas de meu primo como seu gosto musical,em nome da minha familia muito obrigado.

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  4. Belo gesto. Também agradeço em nome da família que sente-se honrada com a lembrança.

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  5. Belo trabalho recordando aquele que fez parte, junto comigo, Marco Antonio, Luiz Lima e eoutros da Confraria da Loucura da escadaria do Teatro da Paz, por volta dos anos 1969. Companheiros de curso ginasial e de noites de estudo em casa de sua máe na estrada que levava à Icoaraci.
    Bela imagem de uma bela pessoa.
    Amém!

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  6. Belo trabalho recordando aquele que fez parte, junto comigo, Marco Antonio, Luiz Lima e eoutros da Confraria da Loucura da escadaria do Teatro da Paz, por volta dos anos 1969. Companheiros de curso ginasial e de noites de estudo em casa de sua máe na estrada que levava à Icoaraci.
    Bela imagem de uma bela pessoa.
    Amém!

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