terça-feira, 28 de junho de 2011

DUNAS SOBRE MARGARIDAS

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Juro, jamais pensei que no dia do ataque a Bagdá pudesse receber flores. Um buquê de margaridas coloridas envoltas em papel laminado e amarradas com um laço de fita de seda. Ah, e a TV informava o avanço da Operação “Tempestade no Deserto”.

Chuvento que sou, chorei um sentimento estranho ... Parecia que águas amazônicas fluíam dos meus olhos encetando um rio de alegria, que por sua vez desaguava barulhando num mar de lamentações.

Eu, feliz com as flores, chovi uma alegria imensurável. Eu, infeliz, também chovi a desertificação da guerra, longe, que oscilava a uma temperatura de 50 a 0 graus em constantes

24 horas impiedosas antes do Conflito.

Homens oscilavam entre o dever e o medo, lá, sobre as dunas, onde o vento permeia o flagelo e o sangue da guerra. Eu, aqui recebi as flores como um gesto de inesgotável ternura, um alívio, aliás, para a preocupação de um pacifista enrustido. Eu oscilei entre o rir e o chorar. E acabei chorando emoções misturadas.

No deserto não havia mais dia nem noite. Um clarão permanente iluminava o céu de 1.001 noites, agora de tormenta. Um céu outrora de mágicas histórias, naquele instante era de trágicas batalhas.

Que fazer das flores, pensei. Elas representavam no momento a nascitura paz vinda de um coração desesperado, embrutecido pelas contingências do cotidiano e pelas agruras da vida inconsequente. Ora, veja só! Como agarrar-me à paz que tanto quis ao longo de tantos meses? Parecia uma ironia o instante da reconquista. As margaridas sobre a mesa, inertes, sabiam disso. Mas o repórter trasmitia os fatos da guerra sanguinária, guerra santa, diziam os mais fanáticos. - Que guerra santa, que nada! Gritei ao lembrar John Merrit, general americano, em sua frase célebre. "A história nos ensina: não há guerra limpa e muito menos santa".

Notícias rápidas caíam sobre o carpete como se o aparelho de TV fosse uma janela de onde se avistava o fogo dos bombardeios. E ali, bem ali defronte das notícias, as flores se portavam lindas, mas indiferentes.

Guerra e flor. Uma é do homem, a outra é de Deus. A primeira já justificou massacres em nome Dele, porém ninguém jamais guerreou por causa de jardins floridos, mesmo aqueles cuidados pelo próprio homem.

Ah, eu elucubrei ciladas para impedir a guerra. Reverti oniricamente a história para que pudesse apenas me deliciar com o presente inusitado: eu fui um marechal da paz, um paradoxal guerreiro em busca de minha paz, como se pudesse evitar o morticínio sobre as dunas da noite árabe. Eu que sempre mandei flores, fui surpreendido com um monte delas. Eram para mim. O cartão falava em sonhos, o cartão dizia palavras de amor. Então me comovi e chovi, digo, chorei de paz pelo amor que tanto queria, enquanto a TV louvava o heroísmo das ações bélicas no solo milenar das dunas, lá onde não nascem flores, mas surge o sangue duro que regará causas espúrias.

Lá fora as crianças brincavam de guerra, vestidas de Rambo, com metralhadoras em punho, indiferentes, assim como as margaridas sobre a mesa . Eu desliguei a TV e a realidade.

Haveria naquela hora de cheirar as flores mandadas por minha mulher e pensar ao menos por um instante que a “Tempestade no Deserto" era uma chuva de flores sobre homens calcinados pelo ódio. Então, eu chovi minha paz interior envolvido no perfume das margaridas.

Crônica de Fernando Canto (1992)

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