segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A CARTA

Texto de Ray Cunha

Chegara sua vez. O absurdo estalava-lhe nas têmporas. Estava cabisbaixo. O outro permaneceu calado. Até que Alexandre o olhou.

- Tu deverias primeiramente conversar com ela. O que não deves é tomar uma atitude precipitada.

Alexandre estava preso ao torpor da frustração. Sobre a mesa, a carta. Dizia num trecho: "Tu és, sobretudo másculo. Tens os músculos nos lugares certos, para nos mobilizar com força. Adoro aconchegar-me no teu regaço viril e uterino; sinto-me mais mulher no teu regaço voluptuoso. Quando o vi pela primeira vez meu coração pulsou descontroladamente. Isto é amor. Amor à primeira vista. Mais do que amor: é paixão".

Era a letra miúda e minuciosa de Carla. Sua letra, num crescendo, desnudava-a, entregava-a a seu amante, àquele homem ali descrito, detalhadamente, até os nervos. Era um homem invejável. Um cavalheiro; um homem de ação; jovem e velho ao mesmo tempo.

Em princípio, Alexandre supôs tratar-se de um original de Carla. Mas, não. Sua mulher criava sempre em papel de Xerox. Saíra, naquela manhã, às pressas. "Um encontro com o amante."

- Alexandre Acapu, trinta anos, nadador profissional e depois oceanógrafo, muito tempo passado no mar e pouco em casa, marido da escritora "- Carla Menescal de Adrianópolis, grande sucesso de vendas com o romance "As Amarras", 'agora desatadas, é... - ia dizer outra coisa, mas leu a recriminação nos olhos do seu amigo, a quem chamava de Velho. - É passado para trás. - Disse, num desabafo.

- Não será um conto, uma crônica, um capítulo de romance? - Velho perguntou.

- Ou memórias?

- Perguntas-lhe o que é. Não ficas te lastimando e nem te deixas enganar pela paranoia. Vais para tua casa e falas com ela sem fazer escândalo. Se for mesmo um amante, urge saber se ela gosta do outro. Então só restará a separação. Este manuscrito sem destinatário não quer dizer nada. Por que ela o deixaria tão visível?

- Nunca entro na biblioteca, que é onde Carla escreve. Tenho meus livros e apetrechos num quarto no quintal.

- Uma mulher, quando trai um homem, age com muita cautela, da Carla não mudou – disse Velho, triste com a desolação do amigo. - Temos algo em comum... Já passei por isso. Sou marinheiro e também sou casado com uma escritora... - voltou a falar, confuso com a prostração de Alexandre.

- É, meu velho. Só que teu caso ela te procurou e disse tudo. Tu aceitaste o jogo.

- Aceitei. A vida é um jogo, meu caro. A derrota é sabida, mas a vitória acontece durante o jogo...

O Sapo continuava bom como sempre. Louis Armstrong inundava o quarto, por onde flutuavam também cheiros de Carla. Carla, um metro e sessenta e sete, quarenta.e oito quilos; um milhão de livro vendidos em três idiomas; trinta e seis anos. Terás encontrado um homem de vinte e um anos de idade, que é quando tinha que te conheci? Eu conquistara então o primeiro lugar na travessia do rio Negro, e tu, minha pequena Carla, publicaras teu primeiro livro de contos, "É Meia-Noite e Eu em Torno de Ti na Cama". Causou sensação no Rio e em São Paulo. Agora, estou chamuscado pelas águas dos mares. Sim, água do mar pode chamuscar nossa alma. Acho que já não te levo como antigamente, à loucura. Ser por isso; minha Carla, que terás encontrado outro homem? Voltarei ao mar e lá ficarei.

Ouviu Carla chegando, e depois a viu entrando no quarto. Era linda. Tinha boca de cupido, carnuda, e olhos grandes e verdes, e cabelos negros e esvoaçantes, e sorria facilmente. Sorria com os lábios e com os olhos.

Fazia calor. Carla chegou ao meio do quarto e desnudou-se de um só golpe. O vestido de seda branca, que tombou a seus pés, contrastava com a cor de canela da sua pele. Riu. Seu riso era mais um trinado. Avançou para ele, que estava sobre a cama empunhando o manuscrito.

-Ah! - exclamou, afastando a mão que empunhava o manuscrito. - É um conto que estou escrevendo. - E beijou-o. - Está faltando papel de xerox. Vim da gravação da entrevista para a televisão. Estava atrasada. - Ia dizendo as coisas de uma vez e beijava-o, e logo estava imergindo naquele delírio de tarde calorenta.

O ar que o comprimia por dentro saiu de um jato, como que deixa a pessoa possuída, produzindo o alívio que advém ao perigo finalmente esmagado.

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