segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A VIAGEM DOS CIGANOS NUMA ARCA DE FLANDRE

Lembranças de uma viagem ao Macacoari em 1985

Conto de Maria Benigna (Maria Bê)

Em mil novecentos e um dia qualquer, uns ciganos de tribos diferentes rebelaram-se e formaram uma nova tribo e partiram sem destino. E como eram ciganos muito, muito especiais, não viajaram de carro ou carroção, ou até mesmo a pé, como fazem todos os ciganos, viajaram em cima de uma enorme arca de flandre cheia de gelo, que tinha uma argola prateada e na qual não se sabe como estava amarrado o fio do sonho. E foram voando e puxando, puxando o fio do sonho, como meninos que empinam papagaio, até chegar no país do verde.

O país do verde era tão lindo, tão belo, que os ciganos, para o sonho não escapulir, amarraram a ponta de seu fio num enorme oleado azul estendido na relva e que tinha cheiro de luz, erva e mares ia, e dele tomaram posse.

Alguns deles pensaram: "Deve ser um pedaço de céu caído!" Alguns riram e eles disseram:

- Coisa muito natural! Há terra caída, espinhela caída, e por que não pedaço de céu caído? - Daí, todos concordaram solenemente.

Havia junto do oleado azul (ou pedaço de céu caído) um poço e as pessoas que moravam no país do verde disseram que nele morava a mãe d' água.

E morava mesmo . Pois à noite, quando boiava a lua cheia(saiu exatamente do buraco que ficou no céu, quando caiu o pedaço que os ciganos chamaram "oleado azul"), a mãe d' água subiu majestosamente pelo balde improvisado pelos ciganos. E não só ela; o vento vinha trazendo o boto, uma cabocla cheia de dengues e malícias, uma coruja enorme, quase tanto quanto um arranha céu, um curumim com sua igara, alguns búfalos, um garoto vestido de vermelho que lembrava o Mogli (pequena rã), uma indiazinha chamada Pão de Mel, um cozinheiro florestal (que talvez fosse um duende disfarçado), um artesão e sua namorada, um pato esquisito que fazia quá, quá, quá a toda hora, uma estranha moça que fotografava sonhos, um viking, um poeta e uma viola.

Quando estavam todos juntos, o vento deitava no ar um cheiro de terra molhada e a magia da noite descia mais forte, misturada no clarão da lua cheia.

Os ciganos foram ficando (não tinham nem data e nem conheciam relógio) e morando no pedaço de céu caído (ou oleado azul) durante um enorme tempo. De dia rachavam lenha, puxavam água do poço (de noite traziam no balde a mãe d'água), cozinhavam, pescavam, sem nunca ficarem cansados. E a noite, ah! a noite! a noite era festa, o boto namorava a cabocla e de tão maroto que era, quando sumia deixava o chapéu. E a cabocla sorria e pensava: "Ele volta!" O viking chegava enorme e manso (dizem que era dissidente). O garoto de vermelho (e nem era chapeuzinho) servia pão e peixe. A viola derramava melodia. O poeta agasalhava-se nas asas de sua coruja e fazia poesia. A índia Pão-de-Mel (talvez por causa do nome) namorava o cozinheiro florestal. O pato começava muito lentamente seus quá, quá, quá e depois contagiava a todos e todos riam e eram felizes.

Um dia, sabe Deus como, alguém achou um velho relógio e os ciganos descobriram a hora. E num instante, como por encanto, o pedaço de céu caído sumiu no azul do céu e a lua deixou de aparecer e sem seu oleado azul e sem luz os ciganos já não podiam ficar. Voltaram bem devagar, cada um para suas antigas tribos, mas em cada um ficou um pedaço de sonho, feito cicatriz.

Hoje, quando eles passam e alguém comenta e duvida da aventura, eles dizem meio marotos e tristes: - A moça fotografou e um poeta documentou. Essa é a prova de que o país do verde existe.

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