sábado, 18 de agosto de 2012

AGUA BENTA, DIABO E CANTORIA NAS RIBANCEIRAS (*)


Por Hélio Pennafort

Hélio Pennafort. Foto: Juvenal Canto

           Foi numa boca de noite que três fedelhos do bairro do Laguinho apareceram no departamento de jornalismo da rádio onde trabalhava a fim de bater papo com a turma da reportagem. Um pouco atarefado na conclusão de um texto para um programa de opinião, não pude prestar bem atenção na conversa, mas deu pra escutar menções a Marcuse, Vietnã, Roda Viva, Lamarca, Sexus, Nexus e Plexus, Guevara e outros modismos políticos, literários e musicais do alvorecer anos 70, época em que tocar nisso aí não era coisa comum na imprensa censurada e nos campus policiados.
            A conversa prosseguiu até as tantas da noite em outro local, o Bar do Tio Júlio, temperada agora com a bebida preferida do reportariado: rum montila com picolé de taperebá dissolvido. Quando não havia dospiano por perto, o recesso do botequim era ponto ideal para trocar de ideias em voz alta. A plateia de biriteiros gostava de consumir o lirismo, a indignação, os sonhos e o aporrinhamento que nessas ocasiões escapavam das gargantas dos jovens. E aqueles três pertenciam ao Clã Liberal do Laguinho, que agia na descoberta e na valorização de músicos, pintores e poetas do bairro, além de cuidar das tradições e segurar um bom relacionamento com todos os estratos culturais da cidade.
Clã Liberal do Laguinho - Encontro em 2006
            Faziam parte do clã, entre outros o poeta Silvio Leopoldo, o artista plástico Manoel Bispo e o jornalista (e também poeta) Odilardo Lima, que fez a letra do melhor samba de exaltação ao Laguinho de todos os tempos. As reuniões aconteciam no quintal do João de Deus e alguns desses encontros mereceram até transmissão radiofônica. A época era também de porralouquice explícita, resultado da repressão ostensiva. E evidente que o clã tinha de ter entre os seus membros alguns azougados. Tanto que até hoje o padre Francisco Benedetti, então vigário da paróquia de São Benedito, deve estar arrependido de ter encomendado o desenho da capa de um boletim paroquial a um dos melhores desenhistas do clã.
            O boletim chegou a ser distribuído por piedosas senhoras do apostolado da oração no final de uma missa de domingo. A capa, desenhada pelo distinto, mostrava o sol despontando e um obelisco em primeiro plano. À primeira vista, tratava-se do taco mais inocente do mundo, próprio mesmo para ilustrar orações, avisos paroquianos e conselhos de vida. Mas quando o padre prestou bem atenção foi um escarcéu sem precedentes na sacristia da igreja do Laguinho. O obelisco, que quando olhado rapidamente tinha a pureza de um igarapé, na realidade representava um bem disfarçado falo intumescido no topo do qual havia duas palavrinhas, em letras microscópicas, excomungadas pela Igreja: amor livre.

Músicas e poesias por aí afora
            
           Os fedelhos que discutiam arte e pensavam poesia em torno de um copo com picolé eram o Olivar Cunha, o Ray Cunha e o Fernando Canto. Depois daquele papo foram agregados informalmente ao departamento de jornalismo (Rádio Educadora), participando e até opinando na elaboração de programas culturais.
            Mais ou menos por esse tempo o Fernando Canto e o Odilardo ajudaram a concretar a ideia de saltimbancar a cultura pelo interior ao mesmo tempo produzir programas que expusessem pelo rádio o até então desconhecido folclore regional, além, claro, do modo de vida do homem das ribeiras.
            Começamos pelo Igarapé do Lago, com a equipe ampliada pela participação do Manoel (“Papa-Arroz”) João, emérito contador de causos. Viajamos numa camioneta Willys nem muito nova nem muito velha e levamos mais de duas horas daqui pra lá por causa da travessia da balsa do [rio] Matapi e mesmo as condições da estrada não estavam boas. Na vila, o pessoal aplaudiu a ideia e topou, na hora, compartilhar do encontro “lítero-musical” logo depois do escurecer.
            O Odilardo funcionava como apresentador e declamador de poesias, o Fernando tocava e cantava os últimos sucessos de Chico Buarque, Raul Seixas e pouca coisa da música amapaense que tinha para entoar. Nem o Grupo Pilão existia ainda. Depois o Fernando acompanhava ao violão os cantadores do lugar que se apresentavam em momentos de muita alegria. E nesse clima de intercâmbio cultural acabávamos numa serenata à beira do rio esperando o alvorecer que não demorava a chegar. E o pitoresco de vez em quando dava as caras para animar ainda mais a viagem.
Casa de miriti, típica do interior do Amapá.
 Foto: Juvenal Canto
            Nessa passagem por Igarapé do Lago, por exemplo, a troupe quase atrasa o “espetáculo” por um motivo que nos deixou rindo a noite toda. Tardinha fomos tomar banho de igarapé, onde se chega por uma ponte estreita e comprida. Antes, porém, paramos num bar que fica no começo da ponte para confraternizar com dúzia de igarapelaguenses ao derredor de uns copos de cana. Fomos ao banho enquanto eles ficavam espalhando alegria pelo entardecer. Quando estávamos espremendo as roupas para voltar, no entanto, eis que se forma um enorme pé-de-briga justo no meio da ponte, por onde teríamos que passar. E como os ânimos não se acalmaram de uma hora para outra, ficamos um tempão de bubuia. Quando chegamos ao encontro, a turma já estava impaciente.
            Em Mazagão Velho, o “espetáculo” teve a participação do famoso Conjunto Mucajá, banda bem regional liderada pelo maestro [Osmundo] Barreto que animava tanto festas como ladainhas na pequena vila. Todos esses encontros eram gravados e transformados num programa de rádio de uma hora de duração, apresentado todos os sábados pela Rádio Educadora São José. Foi quando o amapaense começou a tomar conhecimento das jazidas culturais espalhadas pela hinterlândia do antigo Território.

O Marabaixo e os padres
            
           Foi a partir daí que Fernando Canto pegou embalagem e incrementou o que pode o seu lado cultural. Ajudou a criar o Grupo Pilão, o primeiro a aproveitar as riquezas folclóricas da região, e se danou a escrever livros de versos e de histórias do Amapá, num trabalho paralelo ao do compositor de inúmeras músicas que viraram clássicos do amapaensismo, entre elas Pedra Negra, Joana Joá e Quando o Pau Quebrar.
Igreja São José
Fernando prepara-se agora para lançar “Água Benta e o Diabo”, onde fala da saga do Marabaixo em Macapá e da resistência dos populares em preservá-lo, apesar das dificuldades. “De um lado, a Igreja promovendo a sua dominância e de outro, os negros com sua irreverência e determinação para que a festa do Divino não se extinguisse”. O livro e o título foram inspirados numa declaração de Dom Aristides Piróvano ao Fernando no decorrer de uma entrevista para jornal: “Folclore é folclore, religião é coisa séria e não podemos misturar as duas coisas. A igreja não é contrária à diversão do povo, mas não se pode misturar água benta com o diabo”.
Para escrever “Água Benta e o Diabo”, Fernando recorreu a antigas anotações e encontrou, no meio de pedaços do jornalismo de antigamente, um artigo assinado por Pancrácio Junior, publicado em 31 de maio de 1899 no jornal “Pinsonia”. Nele vê um relato detalhado da festa do Divino Espírito Santo – à qual era vinculado o Marabaixo – e uma enxurrada de críticas ao vigário da Catedral de São José, que não queria ver a liturgia do padroeiro ser embolada à profanação do folclore cultuado pela negrada.
Desenho de Ronaldo Bandeira
para a 2ª edição do livro
Água Benta e o Diabo.
O livro traz ainda depoimentos de macapaenses tradicionais, como o de Zacarias Leite, nascido em 1903, e que foi aluno do padre Julio Maria Lombaerd, um belga que chegou a Macapá em 1913. O que Zacarias Leite conta dá bem a dimensão do desentendimento: “Padre Julio combatia as festas do Marabaixo. Dizia que não passava de batuque e bebedeira, com a exploração de dinheiro, mediante a apresentação da coroa do Divino Espírito Santo. Padre Julio fechava a igreja, mas o povo fincava os mastros na frente da matriz. Era tradicional em Macapá deixar-se essa coroa do Divino na Igreja de São José, de um dia para o outro. O padre Julio não aceitava esse costume. Combatia-o publicamente. Um ano, na igreja, quebrou a coroa de prata do Divino e mandou entregar os pedaços ao festeiro do Marabaixo”.
Fernando revela que as relações entre a Igreja e o Marabaixo se acalmaram um pouco com a criação do Território e a chegada de Janary Nunes para governá-lo. “Para a execução dos seus objetivos, Janary adotou o processo de entendimento e cordialidade para com os moradores mais velhos, chefes patriarcais de famílias tradicionais e líderes de festas religiosas e populares”. Evidentemente que nesse esquema entrava a turma do Marabaixo.



Caldo cultural ainda não ferveu

Mas no fim da década de 40, com a chegada dos padres do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, o Marabaixo voltou a ser combatido com os mesmo argumentos usados pelo antigo pároco de São José. Martinho Ramos, filho do mestre Julião Ramos símbolo dessa festa, contou ao Fernando como foi: “Até 1948 tudo ia bem. Mas depois eu os padres chegaram aqui entenderam que o Marabaixo era macumba. Aí houve uma grande queda, mas Julião aguentou...”
O livro é muito importante para quem estuda cultura popular. E saborosa para quem aprecia o gosto da literatura amazônica. Sem dúvida representa uma ajuda das mais expressivas a essa trabalheira que alguns estão tendo de contar as coisas interessantes que por aqui aconteceram.
Semana passada, sem rumo nem picolé, atualizamos o papo. Fernando passou algum tempo na Universidade Federal do Pará e atualmente trabalha na Fundação Estadual de Cultura, o lugar certo pra ele. Vou tentar reproduzir pra vocês o que me disse nessa conversa.
“Creio que devido aos sucessivos impactos sócio-políticos ao longo de sua existência, o Amapá, notadamente Macapá, sofreu um processo de caldeamento cultural que ainda não ferveu porque não está bem temperado. O fogo existe. E há muita lenha. Mas o tempero é a identidade cultural que falta definir no que se caracteriza nosso povo. E agora que há uma boa luz se espalhando pelo céu do equador, além de toda essa liberdade política que vivemos, também há liberdade de criação. Aliás, cria-se muito, mas infelizmente muita coisa sem qualidade é exposta aos nossos olhos. De que adianta, então, termos um movimento cultural nativista se ele é quase xenófobo? Tem muita porcaria sendo produzida por conta da falta de coerência política e por excesso de vaidades individuais. No fundo (e na superfície) falta algo que tenha a nossa cara. Mas eu parto do princípio que temos substância ideológica e coragem para mudar as coisas, para adequá-las à nossa realidade cultural. Temos pessoas preparadas, temos memória. Porém, temos que lutar para preservar e desenvolver nossa tribo. Só desse jeito é que poderemos entender e construir nossa identidade, e assim teremos armas para lutar contra os ataques perniciosos da globalização, principalmente aquela comandada dissimuladamente pelos grandes grupos detentores do poder. Não, não é paranoia, não! É a minha manifestação ancestral de ‘desconfiança’, estereotipada do índio amazônico”.

(*) Publicado no Jornal do Dia. Macapá, 15 de junho de 1997.

Um comentário:

  1. A tensao divino/mundano eh universal. Acabei de assistir a um documentario onde voce se surpreende ao ver a oposicao religiosa que se deu a musica de Elvis Presley nos USA. E eh sempre algo fluido, nao seria surpresa se as mesmas pessoas que participavam do marabaixo eram tambem paroquianos (e vice-versa e vai e volta). (Nila)

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