terça-feira, 16 de outubro de 2012

PREÂMBULO DAS HORAS

Conto de Lulih Rojanski

silhueta“Qualquer janela nos põe em relação direta, fulminante, com o infinito” (Nelson Rodrigues)

Havia um moço triste que passeava todas as noites na sala de um apartamento do edifício em frente ao meu. Era angustiante a sua solidão, no oitavo andar. Eu havia me habituado a trazer para casa o trabalho do escritório e ficava até altas horas ruminando documentos no computador, envenenando-me com dezenas de xícaras de café e um maço inteiro de cigarros, na companhia única das badaladas nostálgicas do relógio de parede. Achava que a minha solidão era a maior de todas, até a noite em que o vi pela primeira vez, a passear incansavelmente pela sala semi-iluminada. Também fumava um cigarro atrás do outro. Não haveria nada de interessante no fato de alguém estar sozinho no meio da noite, fumando, na penumbra, cigarros incontáveis, não fosse a singularidade da exatidão do horário em que isso se repetia. Ele chegava em casa às onze horas, tirava, ainda na porta, a camisa e a jogava num canto qualquer. Depois apagava as lâmpadas no interruptor ao lado da porta de entrada, deixando acesa apenas uma de luz opaca que, de onde eu observava, era impossível situar. Então começava a andar de um lado ao outro, cabisbaixo, vez por outra se debruçando à janela, mas raramente sentando-se para descansar.

Às duas horas da madrugada, indefectivelmente, atendia ao telefone, e só então tinha descanso. De meu apartamento, eu não podia ouvir a campainha do seu telefone, mas constatei que toda vez que meu relógio de parede soava duas badaladas, ele levantava o fone do gancho. Falava por alguns minutos e depois tornava a sair, vestindo a mesma camisa que deixara abandonada num canto qualquer da sala.

Algumas vezes deixava o aposento totalmente às escuras e só era possível localiza-lo pela brasa pequenina do cigarro, que se acendia de quando em quando, como um vagalume, em frente à janela.

Nunca o vi durante o dia e creio que ele nunca chegou a me ver, nem de dia nem à noite. À tarde havia um velho cachorro sonolento, um dálmata, que dormia na sacada de um apartamento ao lado do seu. Por diversas vezes tive a absurda impressão de que o cachorro morava sozinho, pois jamais presenciei ali qualquer sinal de outra vida. Algum tempo depois percebi que, durante a noite também, o dálmata dormia na sacada.

Durante meses as nossas noites foram exatamente iguais: eu estudava documentos, insone em frente ao computador, sempre observando o rapaz solitário, suas lâmpadas obsoletas e a sua triste pontualidade; o cachorro velho dormia um sono de sonhos cansados, e o rapaz andava sem medidas na penumbra da sala, na expectativa inquietante da hora marcada.

Por muitas vezes, no transcurso dos meses em que o observei, sofri de uma vontade feroz e quase incontrolável de descobrir o número de seu telefone. Na verdade nem cheguei a pensar sobre o que lhe diria, se viesse a lhe telefonar. Talvez lhe dissesse uma frase feita sobre o amor e o desamor, ou lhe contasse uma história muito engraçada, e ele, por um instante abandonaria o cigarro e, através da janela, descobriria quanta vida havia na noite cravejada de estrelas, além dos limites do seu apartamento. Depois desisti dessa vontade incomoda e continuei apenas a assisti-lo, na sua cronologia obsessiva.

Vezes havia em que eu me deitava mais cedo, e ainda assim continuava a vê-lo, pois quando dormia, ele, iluminado de quando em quando pela brasinha do cigarro, passeava de lá para cá, na penumbra dos meus sonhos. Acabei por me irritar com aquela criatura que passara a se intrometer na minha solidão e por algum tempo deixei de observá-lo.

Uma noite, porém, vencido pela culpa de tê-lo abandonado à sua sorte, como se em algum momento eu tivesse participado dela, tornei à janela. Tudo estava como antes. Ele esperava o telefone. O dálmata dormia.

Caía uma chuva de pingos enviesados na noite em que seu telefone não chamou. Ele então mergulhou numa inquietude tão sofrida, que acordou em mim uma piedade deixada para trás, nos anos da infância, quando eu me condoía dos limites da liberdade dos cegos, da impotência dos velhos, da fome dos mendigos. Naquele momento, o moço solitário passou a fazer parte do meu universo povoado de seres que me despertavam compaixão pelas suas deficiências. Eu também era sozinho, mas não havia para mim a angústia da espera. O telefone não tocou e ele acendeu imediatamente as luzes, iluminando toda a sala. Tornou a andar de lá para cá, agitado como um bicho ferido. Depois levantou o fone do gancho, como para conferir se não havia mesmo alguém, e como não houvesse, colocou-o de volta, sem a violência que se poderia esperar de sua condição. E sob a luz intensa ele era belo. Tristemente belo.

Depois de sumir por algum tempo do meu campo de visão, veio debruçar-se na sacada do quarto, os cotovelos apoiados na grade, as mãos segurando a cabeça. Naquele momento achei que ele chorasse. Odiei com força a criatura que deixou de lhe telefonar naquela noite chuvosa.

Procurei esquecer os dois, mergulhando em meu próprio mundo. Quando tornei a olhá-lo, havia subido na janela da sala e, sentado, olhava para baixo, com as pernas molhadas dos respingos da chuva dependuradas no vazio. A súbita certeza de que ele ia pular do oitavo andar me causou no estômago uma frieza de cadáver. Até hoje, quando me lembro, tenho a nítida certeza de vê-lo no ar, mergulhado num voo sem volta, libertando-se da sua infinita espera. Acenei-lhe com uma insistência patética, e ele não me viu. Gritei-lhe, atribuindo-lhe nomes diversos – talvez nenhum fosse o seu – e ele não escutou porque havia entre nós o ruído da chuva. Foi aí que, dolorosamente, me arrependi de não ter um dia buscado o número de seu telefone. Eu já beirava o pânico e pensava em mil maneiras de lhe pedir que não pulasse, quando ele desceu da janela, fechou-a e desapareceu no interior de seu apartamento.

Respirei, profundamente aliviado, e fui dormir com a decisão irrevogável de nunca mais me preocupar com o desconhecido. Entretanto, ele estava em meus sonhos, flutuando no ar sob um chuvisco renitente.

Quando saí para o trabalho, pela manhã, havia na calçada de seu edifício um ajuntamento de pessoas: homens, mulheres, velhos, crianças que falavam ao mesmo tempo, alguns apontavam para cima, chegavam outros, todos tomados por uma curiosidade mórbida. Com o coração frenético e cheio de remorsos, abri caminho entre os curiosos, sentindo-me desprezível pela capacidade que tivera de dormir indiferente à dor alheia. No centro do círculo humano formado na calçada em frente ao edifício, estendido sobre uma poça de sangue, e morto, estava o velho dálmata solitário.

Conto premiado pela Fundação Cassiano Ricardo em 1996, publicado na Antologia de Contos Alberto Renart, no mesmo ano. Leitura recomendada (ou obrigatória) no vestibular da Unifap em 1997.

Um comentário:

  1. BROTHER FERNANDO.UFA!QUASE NÃO CONSEGUIA COMENTAR SOBRE O CONTO 'PREAMBULO DAS HORAS' QUE POR MIM FOI LIDO MUITAS VEZES. CONTO QUE SÓ VEIO COMPROVAR A FORTE 'PEGADA LITERARIA'
    DE SUA AUTORA.BELO.KAFKANIANO.HOLYWOODIANO.
    UMA NARRATIVA ENVOLVENTE QUE AGUÇA A SUA LEITURA.EXCELENTE JOGO LUDICO COM A ROTINA DA ROTINA.E NO FINAL DESMONTA-SE A LINHA DE NARRATIVA SEGUIDA ATÉ ENTÃO.-EXCELENTE!
    OS CÃES MERECEM O CÉU.
    OBS.PARABENS POR TODOS OS TEXTOS COLOCADOS NESTE ESPAÇO.MANTENHO O DESEJO DE VÊ-LOS NO
    'CONTOS DO CANTO DA AMAZONIA'.LJORGE.

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