terça-feira, 27 de novembro de 2012

A POROROCA ESTÁ SUMINDO (*)

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Texto de Hélio Pennafort

Vários rios amapaenses ficaram conhecidos mais pelo seu lado pororoqueiro do que por sua extensão ou por sua importância sócio-econômica. Tudo por conta das estórias de embarcadiços e estórias de pescadores que corriam por este mundo a fora dando conta de ondas gigantescas que revolucionavam a embocadura dos rios, derrubando árvores, empurrando a ribanceira mais para dentro, espantando a tralhotada e emborcando incautas igarités ou barcos desavisados que achavam de passar naquela hora lá por perto. Fatos reais se misturavam à fantasia. Entre os reais alguns bem tristes. Como o naufrágio de uma pequena canoa-motor-de-popa às proximidades do igarapé Maruani, afluente do Rio Cassiporé, que provocou a morte do médico Lélio Silva e do comissário de policia Deusdeth, que estava na região a serviço do governo do Território. Na embarcação ainda se encontravam a enfermeira Nair Guarany Lemos e dois caboclos que escaparam porque sabiam nadar e tiveram muita sorte. Eles baixavam o Cassiporé em direção à vila de Taperebá. Quase na hora da pororoca passar, encostaram na margem por medida de segurança. Já se ouvia a zoada. Minutos depois, apareceram as primeiras ondas. Quando passaram, acordando o barranco, o Deusdeth insistiu para que todo mundo embarcasse na canoa e seguisse viagem. De nada adiantaram as ponderações da enfermeira Nair e dos caboclos. Lá se foram. Só que o comissário, que pilotava a canoa, subestimou o banzeiro da retaguarda, tão perigoso quanto as ondas de linha de frente. Resultado, a canoa virou. Dr. Lélio e Deusdeth, que não sabiam nadar desapareceram na escuridão barrenta do Cassiporé. Dias depois encontraram os corpos abaixo da vila do Taperebá. A uns 30 quilômetros do local do acidente.

Outro estrago que a pororoca fez foi às proximidades da Ilha do Maracá. Ivanildo dos Santos, Orlando Cordeiro e Antonio Maranhense passavam por ali há três dias, sem nenhum problema. Tripulavam a canoa “Dois Amigos”, usada na pesca da Gurijuba. De repente, eles se viram na maior enrascada da vida. Na época – já lá se vão uns vinte anos -, eu narrei o fato para a Rádio Educadora: “acompanhada de poderosas ondas, a enchente apanhou a canoa de surpresa e a ventania começou por rasgar a vela, quebrar o mastro e, finalmente, afundá-la. Ivanildo, Orlando e Antonio ficaram assim, repentinamente, ao sabor das ondas que de tão altas não deixavam ver o mato”. Agarrados na canoa-de-leme, os náufragos, de inicio, se limitavam a balançar lentamente os pés para garantir a cabeça fora d’água e poupar energias, pois a distância a vencer não era pequena, embora contando com a correnteza para ajudá-los. Ivanildo e Orlando, por serem mais jovens, estavam resistindo bem ao impulso das ondas. Na metade da terrível jornada, entretanto, Antonio Maranhense começou a implorar ajuda dos companheiros. Conta Ivanildo: “Primeiro ouvimos ele pedir para que nos desse a mão para ele ajudar a se sustentar na canoa-de-leme. Depois ele começou a querer nos agarrar, pra vir na costa da gente. Nós vimos que o homem estava desesperado, mas não deu... Se fizesse o que ele queria, morria todo mundo. Largamos ele e viemos embora. Gastamos quase toda a maré (enchente) para alcançar a beira. Ficamos horas e horas de bubuia”. Outro caso entre os inúmeros registrados na Costa Norte amapaense, aconteceu com dois barcos de propriedade do governo. O iate São Luiz, mal atracado no Marcílio Dias, não resistiu à passagem de uma rebarba de pororoca perto do Ariri e foi para o fundo em questão de minutos. Fim humilhante para um vigoroso barco acostumado a enfrentar vagalhões na rota Macapá/Oiapoque, que cobria regularmente. Em pane, vinha sendo rebocado pelo Marcílio quando pegou o rabo da maré. E só não venceu mais esse desafio das ondas porque não tinha um filho-da-mãe para segurar o leme. Ficou indefeso, desequilibrado.

A pororoca avisa com alguma antecedência quando vai aparecer. Escuta-se ao longe um barulho mais ou menos parecido com o que sai quando a gente sopra na boca de uma garrafa. E vai aumentando, aumentando até que aparecem as primeiras ondas, seguidas de um barulho d’água que às vezes mete medo. Imediatamente à passagem das ondas precursoras, o nível do rio aumenta visivelmente. E a força da correnteza vai tocando rio adentro tudo o que derruba ou encontra pelo caminho. Toras de madeira, galhos de árvores, troncos de miritizeiros. Feita a desarrumação costumeira, a pororoca desapareceu no dobrar do primeiro estirão, o rio já encheu mais um metro. A aos poucos a tranquilidade volta ao lugar. Essa descrição é de quem assistiu ao fenômeno na embocadura de um rio. Dentro dele, numa parte que seja relativamente estreita, além da zoada e do borbulhar, escuta-se também o quebrar dos galhos e o cair das árvores que não estejam bem fincadas.

A mais famosa das pororocas movimenta a foz do rio Araguari. Mormente nos três primeiros meses do ano quando aparecia com toda a aterradora exuberância. A sua fama chegou ao Japão. Uma das principais redes de televisão japonesa, a NHK, mandou sua equipe acampar numa das fazendolas do Araguari. Levou imagens sensacionais que causou espanto à japonesada. Amaral Neto, no tempo em que se dedicava ao jornalismo, também levou daqui boas reportagens sobre a pororoca, um fenômeno que ainda hoje é desconhecido até mesmo pela maioria dos amapaenses e quem não a viu quando era grande, paciência.

Chegam notícias de seu desaparecimento paulatino. Principalmente a do Araguari, por culpa do assoreamento do rio, segundo os entendidos. Pode ser. Porque até hoje ninguém informou com detalhes o que é uma pororoca. Dizer que é o encontro da água do rio com a água do mar é papo furado. Se fosse assim, todos os rios tinham a sua pororoca. Por enquanto a explicação mais aceitável é que ela seja o resultado da formação topográfica do leito do rio com a força da maré no início do fluxo. Isso justifica até o fato de a pororoca às vezes crescer, às vezes diminuir de intensidade. A força da maré, afinal, recebe também influência da lua. Só que agora ela está sumindo mesmo.

Adauto Pantoja mora na fazenda Bom Amigo, na foz do Araguari. Sua casa serviu de base de operações para a equipe da TV NHK e da Rede Globo. “Está havendo muita mudança com a pororoca. Ela já foi muito porruda agora está pequena. E antes era mais forte em março e abril. Já esse ano cresceu mais em fevereiro. Mas para o que era, esta diminuíndo muito”, disse Adauto. Francisco Paulino Rodrigues, o Careca (40 anos), nasceu no Cassiporé e desde os dez anos trabalha embarcado. Começou numa canoa a vela de seu pai, Dico Batista, fazendo viagem para Oiapoque levando melancias, jerimuns, porcos e galinhas. Hoje tem um barco motorizado e dedica-se a pesca no litoral. “Eu já me alaguei uma vez no Bailique quando fui surpreendido por uma pororoca muito menor do que a que tinha no Araguari. Faz algum tempo. O erro foi meu que não coloquei a canoa no canalão. Fundeei numa parte mais ou menos rasa e quando a pororoca apareceu fez o estrago. Mas deu para eu recuperar o barco e não aconteceu nada com os tripulantes”. Falando com desenvoltura enquanto descarrega o peixe na doca do Igarapé das Mulheres. Careca garante que a pororoca do Araguari esta diminuindo em olhos vistos. “Quando ela estava no pique, alcançava até mais de cinco meros de altura. Hoje talvez nem chegue aos dois nos dias em que ela apareceu maior.” Consumindo até quinze dias em cada jornada de pesca, Careca acha uma explicação para o desaparecimento da pororoca do Araguari: “O rio, na foz, está bem raso. E continua secando. Daí ela perde a força porque a pororoca precisa de uma quantidade certa de água para crescer. Nem muito fundo, nem muito raso.”

(*) Publicado no jornal “A PROVINCIA DO PARÁ”, página JORNAL DO AMAPÁ Nº 321 – MACAPÁ, 03 DE NOVEMBRO DE 1991

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