quinta-feira, 8 de novembro de 2012

ELA TEM UM FANIQUITO SE OUVIR SÉRGIO SAMPAIO

Conto de José Edson dos Santos

Madrugada fria de julho, Odete fecha a janela para não se resfriar, numa hora em que não vinha mais ninguém em sua casa, a não ser que o Fernando tenha mudado de idéia e lhe telefone convidando para beber vinho tinto em algum lugar aconchegante, onde poderia conversar calmamente ouvindo uma música instrumental. A lufada do vento na vidraça trás o cheiro da dama da noite como se uma névoa soturna pairasse na Asa Norte. Ela senta no sofá, esperançosa e insone, folheando um livro de arte. René Magritte, O Pensador Tornando Invisível. Escuta os sonidos da quadra. Cães uivando à lua. Do apartamento ao lado chegam risos, abafados pela conversa discreta e pelo sacrifício das horas. O motor barulhento de um carro de um boy acelerado quebra o silêncio e a letargia. Miados de um gato embaixo do bloco, talvez reclamando do frio. Conversa distante de boêmios retardatários.

Odete tem a mania de roer as unhas até o sabugo para disfarçar quando está ansiosa. O relógio de parede boceja em uma solidão como soprasse da lembrança uma canção mordaz em seu ouvido. “Não é vivendo que se aprende Odete/ mas é vivendo que se aprende a viver. / A vida passa, eu fico louco/ Fico rouco, fico pouco me importando/ com o que vai acontecer...”.¹ Era uma canção que tinha o seu nome. Lembrar dos amigos da universidade em um momento frágil de soledade, reprojeta da memória um tempo de amizade e descontração, perpetuado em uma fotografia emoldurada na parede da sala. Coloca o livro na estante e vai decidida até o guarda roupa. Faz uma combinação totalmente anti-fashion e vai produzindo seu figurino. Calça verde de veludo, jaqueta cáqui de couro, blusa de manga comprida azul. Devidamente produzida, pega as chaves do carro do criado-mudo. Dá um retoque de batom carmim nos lábios antes de abrir a porta do elevador e ter a certeza que fará uma incursão pela madrugada do Plano Piloto.

“Eu daria tudo/ para não ver você chumbada/ para não ver você baleada/ para não ver você arriada/ a mulher abandonada/ mas não posso fazer nada/ eu sou apenas um compositor popular”². Estava com essa música martelando na cabeça o dia inteiro. O Fernando tinha muito a ver com a sua afetividade debilitada. Esse cara entrou em sua vida como um vento arrebatador, desses que sopra onde quer, mas que ultimamente não passava da uma ventoinha. Deve ser problema de carma, paciência. Sentindo o frio no rosto, liga o carro e parte. A insuportável lhe estressava o corpo inteiro, a mesmice das pessoas de seu trabalho também. Recorda novamente dos diletos fazendo a tesourinha debaixo do viaduto. O Ernesto tomou chá de sumiço já faz um tempão. Giselda a antílope tresloucada, virou hippie de boutique em Jeriquaquara. Luís Alfredo piorou de cirrose e foi para a casa de sua mãe em Pirenópolis. A Telma andava dilatando a pupila sobre os livros de antropologia para fazer mestrado. Daniel e Jô haviam mudado para o sítio de Sobradinho, consumidos no dilema da coqueíne e da contra cultura. Elder com sua paixão de tocar John Caltrane no sax, não visitava mais ninguém. O Gilberto tirou férias e foi pescar no rio Araguaia. Até a simplória da Rita andava se iniciando nos segredos de Santo Daime. Depois que ela tomou chá de cogumelo, pirou de vez. Que falta fazem os amigos mais diletos. Fazia tempo que a gente não se encontrava para tomar cerveja no bar cafofo ou no DCE do Divino, conversar fiado e contar piadas. Brasília tem muito dessa esfinge que precisa ser decifrada, deglutida, senão o distanciamento e a profusão de seus espaços nos devoram, principalmente quando as pessoas a quem a gente quer bem, somem.

Odete à vezes superava esse vazio enfiando a cara no trabalho, levando projetos para analisar em casa, concluindo relatórios, mas sempre na dependência afetiva e emocional do Fernando. Depois de seu ciúme desmedido, ele procurou dar um tempo. Daqui pra frente tudo vai ser diferente, ela pensava, mas a realidade sempre se mostrava sinuosa de mais, enquanto pudesse reagir, não havia qualquer possibilidade de morarem juntos. Cada um em seu canto, evita brigas e cenas de possessividade explícitas. “Você pode ir chorar no colo da mamãe/ dizer pros seus irmãos o quanto eu fui ruim/ chamar toda a polícia pra me prender/ chegar com o advogado e ordem do juiz/ você pode dizer o que quiser de mim.../ nem assim” ³. Novamente as músicas de Ségio Sampaio ficam azucrinando os seus ouvidos. Não dava pra conviver com as mentiras, as desculpas esfarrapadas do Fernando. O cafajeste vivia apontando e no outro dia aparecia com a cara mais cínica como nada tivesse acontecido. Ele que fosse choramingar suas mágoas no colo da mãe dele!

No começo da semana a maioria dos bares fecham mais cedo nas entrequadas. A solidão das ruas devem lavar em algum barzinho aprazível, raciocinava Odete, dirigindo o Monza a lugar que ela tinha certeza que estaria aberto naquela hora, dependendo da freguesia, ficava aberto até altas horas da madrugada. O “Refúgio” é um bar bem transado, frequentado por pirados, descolados, jornalistas, intelectuais e umas figuras meio góticas. Além da birinight, sempre rola uma música que agrada todas as tribos. Tem noite de esquetes teatrais, de recitais poéticos. É um lugar onde as pessoas vão ver pessoas, paquerar, jogar conversa fora. Estaciona o carro no lugar indicado pelo flanelinha. Vozes, risadas, sinal de vida na madrugada brasílica. Caminha por entre as mesas observando aquela fauna estranha e seus burburinhos. Senta-se em uma mesa esquecida em seu lado esquerdo. Faz uma panorâmica do local rapidamente e vê que não há ninguém conhecido. Acendeu um cigarro Free com prazer e fez um aceno ao garçom, um sujeito simpático, com sorriso largo e voz de locutor de rádio: - Boa noite. Em que posso lhe servir, senhorita?

- Um Jack Daniels com gelo.

- Mais alguma coisa?

- Por enquanto, não. Tem alguma apresentação de teatro hoje?

- Daqui a pouquinho começa. Já trago o seu uísque, diz o bom garçom, sumindo no meio do burburinho.

Um blues plangente de Muddy Walters vai invadindo o ambiente, criando um clima agradável. Odete fumega sua tensão quando Genaro, o garçom solícito, chega com o Jack Daniels on the rocks. A música pára. Surge um ator vestido com roupa branca de um hospital psiquiátrico. Tem uma maquilagem pesada no rosto. Começa uma coreografia ritualística seguido de um êxtase catártico. Faz uma estátua expressiva e anuncia a emissão radiofônica de Antonin Artaud:

- “O teatro é na realidade a gênese da criação, isto se fará. Tive uma visão hoje à tarde. Vi aqueles que me seguirão e aqueles que ainda não têm um corpo, porque os porcos como aqueles do restaurante de ontem à noite comem demais. Existe quem coma demais e outros como eu que não podem mais comer sem escarrar em você”.4

O ator com seu jogo de cena deixa todo mundo estarrecido, em silêncio sepulcral. Um rapaz barbudo na mesa vizinha começa a bater palmas, gritando efusivamente o nome da figura performática, ao seu lado, uma garota tipo dark com sorriso entre dentes. Apesar dos desenlaces, as pessoas cultivam um astral maravilhoso, pensava Odete. O Fernando haveria de ligar no outro dia inventando mais uma de suas desculpas, mas desta vez não teria perdão. O mau caráter pensa que não sei de suas aprontações. O safado chegou ao extremo de ser gigolô de uma professora viúva, mas vive dizendo aos sete ventos que conseguiu um bico de assessor de um deputado distrital. Paspalho, mentira tem pernas curtas. “Antigamente quando ele não tinha nada/saia sempre na captura do que fazer/e procurava, com todo mundo,/ encontrava você”5. Novamente o Sérgio Sampaio toma de assalto a sua boca. O ator artaudiano sai ovacionado quando alguém começa a récita Allan Ginsberg. Outro poeta, aproveitando a deixa, sobe em uma mesa e fala agressivamente um augusto dos anjos. Versos íntimos. Que emoção. Realmente o “Refúgio” bar dez se regozijava, Odete.

– Quem gosta de poesia, não pode ficar sozinha. Vem curtir esse momento maravilhoso com a gente, diz o rapaz barbudo da mesa vizinha. Ela fica sem saber como negar e se senta ao lado da garota dark.

– Tá legal. Vou avisar o Genaro que vou ficar na mesa de vocês.

– O meu nome é Mansur e o dela é Laura e o seu?

– Odete, muito prazer

– O prazer é todo nosso, você vem sempre aqui, Odete?

– Às vezes me encontro com os meus amigos, principalmente quando tem esse sarau quinzenal. Hoje estou solitária

– Uma andorinha sozinha, não faz verão, replica Laura.

– Nem sempre.

– Tem dias que é bem melhor ficar só.

– Conversar com a gente mesmo.

– Hoje você tem com quem conversar. Aquela figura que falou o texto do Artaud é o Fred, um amigo nosso. Quando sairmos daqui iremos até sua casa fazer um rango esperto. Vem com a gente?

– Claro, você é nossa convidada, antecipa Mansur.

–Preciso levar alguma coisa?

– A sua presença gratificante é suficiente, insiste Laura.

– Na casa do Fred tem uma adega formidável, você precisa ver.

– Tô vendo que desse jeito vou acabar amanhecendo com você.

– Então vamos chamar o Fred. Está ficando tarde, intercede Laura.

– Odete, tenha certeza de que teremos uma noitada excelente! Finaliza Mansur cheio de entusiasmo.

– Confio em vocês, aliás eu estava precisando fazer algo diferente, talvez essa seja a oportunidade que esteja faltando. Vou seguindo vocês no meu carro, sentencia com cumplicidade Odete.

Engraçada a maneira imprevisível como se conhece as pessoas Mansur, Laura e Fred, pareciam aqueles velhos amigos que andavam sumidos. Odete percebeu o quanto foi tola por esperar a ligação do crápula do Fernando. Caminha até o carro estacionado do outro lado da rua. O flanelinha faz um sinal de positivo com o polegar, um chuvisco frio começa a cair, misturando-se com suas lágrimas. Uma sensação inexplicável vai se amalgamando em seu sentimento. “Tola, você que não soube ser a dimensão/ de um poeta do riso e da dor/da tristeza alegria do amor.../pouco prazer/ não é coisa pro meu coração/ que foi feito pra grande paixão/ para os amores maiores/ como o seu/ tolo fui eu”6. Por onde andaria o calhorda do Fernando? Besteira ficar lembrando dele com as canções do Sérgio Sampaio latejando na cabeça. Quando a barra pesa, a corda arrebenta sempre para o lado do mais fraco. Agora seria diferente. Ele que fosse para os quintos do inferno e não aparecesse mais. Esse papo de que amor de pica quando bate fica, é um mito. Filosofar com a solidão não tem nada a ver com a fragilidade feminina. Quem sabe na próxima semana apareçam uns velhos amigos de guerra trazendo noticias recentes daqueles que realmente tomaram chá de sumiço. Nada de esfinges, couraças, distanciamentos. Precisava colocar apenas seu bloco na rua senão ia ficar louca. Não é vivendo que se aprende Odete batuca uma voz no subconsciente. Pobre blues de sua purgação interior. A questão do carma que se dane. O Fernando também. Os seus panos de bunda vou jogar da janela amanhã mesmo, arquitetava Odete. Aquele cara que tinha lhe consumido com suas energias podia esperar pelo pior, isso ele tinha. Um dia o amor acaba o respeito também, a consideração mais ainda. Tem que acontecer, tem que ser assim, nada permanece inalterado até o fim cada lugar em sua coisa. Até outro dia, até em outro lugar. Quem manda em mim sou eu, quem manda em você é você ou não é vivendo que se aprende? Não tenha medo. O que pintar, pintou. Sinceramente.

Citações incidentais em Ela Tem Um Faniquito Se Ouvir Sérgio Sampaio:

(1) Odete. Sérgio Sampaio (LP. Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua. Philips/ Polygram, 1973).

(2) Tem Que Acontecer. Sérgio Sampaio (LP. Tem Que Acontecer. Continental. 1976).

(3) Nem assim. Sérgio Sampaio (LP. Sinceramente. Gravina/ Transamérica. 1982).

(4) Antonin Artaud, em Uma Última Carta Sobre o Teatro (Carta à paule Thévenin, publicado no volume Para Acabar com o Julgamento de Deus, Ed. K / 1948, PP. 107/ 108).

(5) Na Captura. Sérgio Sampaio (LP. Sinceramente. Gravina/ Transamérica. 1982).

Tolo Fui Eu. Sérgio Sampaio (LP Sinceramente. Gravina/ Transamérica. 1982).

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