quinta-feira, 29 de novembro de 2012

HUMOR


O lado humorista do escritor amapaense Ray Cunha pode ser visto neste conto sádico, onde as personagens viajam direto para a casa do diabo. Fantástico (F.C.) Ray Cunha é escritor e jornalista. Reside atualmente em Brasília.

VILA BELZEBU (*)
Conto de Ray Cunha

Até que o ônibus não estava muito lotado. Pipira conseguiu se apoiar na muleta de um saci Pererê. O motorista ia correndo um bocado quando Mutreta deu o sinal e freou bruscamente. Uma anta veio voando lá detrás e deu uma chifrada num bebê que só estava chupando o dedo. O bebê começou a chorar e pegou uma bofetada.
- Cala a boca, assassino! – disse-lhe a mãe dele, repreendendo-o severamente.
Como o ônibus já estava muito lotado, o casal que ia saltar jogou os três garotinhos, seus filhos, pela janela. Um deles caiu de mau jeito e já ia para baixo das rodas de uma escavadeira Caterpilar quando um soldado da PM o puxou pelas pernas, tornando-se um heroi.
Um pretão de três metros quis tirar um sarro com uma anã e foi atingido com um golpe baixo. Um sujeito com mania de cavalo ia relinchando, mas foi posto para fora com um pontapé na parte esquerda do beiço inferior. O motorista estava com muito ódio de um sujeito que puxou a caneta para anotar a placa do carro, a fim de “posteriormente”, conforme explicou para um vizinho, “queixar-se nos ditames da lei no departamento cabível”.
- Tu és um sem vergonha, seu cretino desavergonhado e purulento. Não sei onde estou que não paro este ônibus, boto todo mundo pra fora e pronto. Ainda te dou uma surra só com meu par de meias, cujo fedor nem hiena aguenta.
O sujeito que puxou a caneta estava visivelmente com medo da barbaridade do motorista.
- Basta a gente olhar para a tua cara, cabra safado, para se ver que a vergonha em ti já foi lambida. Tu estás pensado que é só puxar uma caneta e anotar a chapa, é?
- Vê se tu paras na tua casa; quero conversar com tua mãe! – gritou alguém lá do meio do coletivo.
- Se esse insulto partisse de ti, sujeitinho descarado – disse o motorista para o incauto escrevinhador, - eu te poria os dedos dos pés nessa tua cara insossa. Tu herdaste essa cretinice da tua mãe?
O outro, acovardado e humilhado, pediu pra saltar, mas num gesto inesperado de heroísmo, fincou a caneta no alto da cabeça do motorista. Ao ver o sangue, o chofer começou ter vertigens, até que apareceu uma gueixa com um leque do tamanho de um guarda-sol e começou a abanar o gajo. Ele se recompôs e zarpou.
Nessas alturas começou a trovejar e caiu um baita aguaceiro, que logo encharcou a Margarida. Ela fechou mais que rapidamente a janela, mas quando viu a janela foi aberta de novo. Ela tornou a fechá-la, mas novamente a janela foi aberta. Então Margarida olhou para trás e viu um sujeito com dois fundos de garrafa na cara abrindo a janela da moça.
- Primeiro vou te arrancar dos olhos esses dois telescópios, depois quebro eles e te corto os dedos mindinhos. A seguir, tiro meus sapatos altos e te dou com o salto de ferro só nos lóbulos das orelhas e no osso do nariz.
O rapaz, todo ensanguentado, explicou que não enxergava direito a janela, que só tinha uma das vidraças.
- Meu Deus! Massacrei um intelectual por causa da janela deste ônibus – lamentou Margarida.
Foi nessa hora que jogaram uma pedra no olho do motorista. Ele perdeu a direção do carro e o ônibus brecou certo no fim da linha, onde Belzebu já os esperava de garfo em punho.

(*) Publicado no jornal Inteligentsia. Brasília, setembro de 1994.

Um comentário:

  1. Fernando, escrevi esse conto em 1987, para o antigo jornal Correio do Brasil, de Brasília. Obrigado pela lembrança!

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