sexta-feira, 25 de abril de 2014

PAVÃO E O MARABAIXO

      
Foto disponível em:
 www.federacaofolcloricadoamapa.blogspot.com
Em maio vai fazer cinco anos que o Mestre Pavão nos deixou. Reproduzo esta crônica que escrevi sobre ele, com uma grande saudade no coração.

O ÚLTIMO VOO DO PAVÃO *
 Fernando Canto
      Na segunda-feira, 11 de maio, o mestre Pavão bateu suas belas asas para nunca mais.
       O homem do Marabaixo partiu para encontrar-se com seus ancestrais, os mesmos que lhe ensinaram a tocar tão bem a caixa, o tambor que anunciava bons augúrios nas tardes do Laguinho.
Com ele Pavão comunicava a seus pares, os agentes populares do sagrado, que a festa do Divino e da Santíssima Trindade já tinha início. E todo um ritual deveria ser obedecido, desde o Domingo da Aleluia, passando pelos preparativos da seleção dos mastros nas matas do Curiaú, até a sua derrubada e escolha dos próximos festeiros no Domingo do Senhor. Com ele se foi um arcabouço cultural de grande valia para a memória do nosso patrimônio imaterial. Foi-se também a sabedoria dos que fazem acontecer as manifestações mais legítimas do povo. E restou apenas o espanto dos que ficaram.
Doente, não mais participava ativamente dos eventos do Marabaixo como nos velhos tempos, mas sempre dava um jeito de ir em sua cadeira de rodas aos mais importantes, para ouvir o rufar das caixas  e ver as saias da negras velhas rodarem sob o ritmo intenso oriundo de além-mar.
            Pavão levava muito a sério o que fazia no Marabaixo. Até brigava por ele. Seu amor pelo folclore certamente foi herdado do avô Julião Ramos, o grande líder negro, que na época da implantação do Território Federal do Amapá disseminou o ritmo e a dança para todo o Brasil.
No domingo, véspera da sua morte, sua filha Ana perguntou-lhe se ia ao Marabaixo do Dia das Mães na casa da Naíra – uma das festeiras deste ano no bairro do Laguinho. Ele disse que não ia porque estava indisposto, mas mandou todo o pessoal de sua casa para lá, pedindo que não deixassem a ”cultura morrer”. Mal sabiam todos de sua casa que a cultura do Marabaixo, nele impregnada, estava morrendo um pouquinho com ele.
            Justo que consideramos a memória como o deciframento do que somos à luz do que não somos mais, a morte é o abismo que tudo leva e engole inclusive o segredo da identidade, aquilo que nos pertence social e culturalmente. Posto isto, quantas conversas não foram abruptamente cortadas numa gravação para um trabalho de conclusão de curso dessas tantas faculdades da capital? Assim sendo, o que restou de seus depoimentos, desse depósito memorial tão importante para que se analise o Marabaixo? Ora, sabe lá quantos pesquisadores egoístas guardam suas fitas encarunchadas e vídeos empoeirados que nunca vão se abrir para ninguém?
            Mestre Pavão a todos respondia com a maior paciência, paciência esta que aprendeu a ter com a doença intratável que lhe fez perder uma perna. Mestre Pavão dava a todos o seu conhecimento vívido e vivido intensamente em setenta e dois anos de repetição ritualística que a sua memória avivava e exprimia no vai-e-vem dos olhos.
            Aqui peço licença poética ao escritor moçambicano Mia Couto que escreveu o “Último Voo do Flamingo”, para parafraseá-lo, dizendo que o nosso pavão alçou seu último voo na tarde amena de maio. Um voo curto, é certo, porque pavões não voam quase nada, mas são aves do paraíso por excelência.
Sua luxuriante plumagem em profusão de dourados, verdes e azuis à luz do sol reflete uma miríade de cores, onde o vermelho e o branco parecem estar presentes como se preparando para um desfile da Universidade de Samba Boêmios do Laguinho, a escola do coração do mestre. Convém lembrar aqui que o simbolismo do pavão carrega as qualidades de incorruptibilidade, imortalidade, beleza e glória, que por sua vez se baseia em outro aspecto além destes: a ave é predadora natural da serpente, e em certas partes do mundo, mesmo seu aspecto maravilhoso é creditado ao fato da ave transmutar espontaneamente os venenos que absorve do réptil. Este simbolismo de triunfo sobre a morte e capacidade de regeneração, liga ainda o animal ao elemento fogo.
            Fogo, sim, do Marabaixo quente, do “Caldeirão do Pavão” com seu caldo revitalizador do carnaval que tanto o mestre amava e por isso se enfeitava nos áureos tempos dos desfiles da FAB. Vai em paz, Pavão, tua plumagem tem cem olhos para vigiar o que deixaste entre nós.


*Publicado originalmente em A Gazeta (maio de 2009) e depois no livro Adoradores do Sol, de minha autoria (Scortecci, São Paulo, 2010.)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O JUIZ E O JOGO POLÍTICO

Fernando Canto
Sociólogo
            Pensando nas eleições deste ano no Brasil, e especialmente no Amapá, resolvi falar um pouco da cultura grega clássica, dos homens e mulheres que viveram entre os séculos V e VI a.C. na cidade grega de Atenas, chamada por Platão de Sophia. Essa palavra grega significa um tipo especial de sabedoria que une a teoria à prática, pois eles eram pessoas que filosofavam e praticavam o que pensavam, de acordo com  a jornalista Ana Beatriz Magno.

            Os gregos encenavam tragédias, discursavam sobre a educação e tinham escolas para onde mandavam os meninos e praticavam a democracia com convicção. Magno informa que a cada doze meses sorteavam um quinto dos 40 mil cidadãos de Atenas para ocupar os principais cargos públicos. O sorteio acontecia na Ágora, um misto de praça, mercado e assembleia. Os mandatos eram renovados anualmente e ninguém podia permanecer no mesmo cargo. Segundo a autora, se você era juiz num momento, no outro podia ser soldado. As decisões importantes eram tomadas em grandes assembleias, realizadas mensalmente com a participação de todos os cidadãos. Todos em termos, diz a autora, pois a mesma Grécia clássica e heroica excluía mulheres e escravizava estrangeiros. Só os machos, adultos e livres podiam ser considerados cidadãos. Mas, apesar dos preconceitos, não se pode apagar o valor de um dos períodos mais férteis da humanidade.                                                    Eles também inventaram todo um cotidiano de práticas e prazeres, tais como as padarias, teatros, termas e os jogos olímpicos, estes sempre em homenagem a Zeus, em Atenas. E nunca em tempos de guerra. Os atletas competiam nus e qualquer pessoa podia assistir - menos as mulheres casadas. As desobedientes pagavam com a vida, jogadas do alto de uma rocha. Conta-se que só uma mulher rebelde, chamada Calipatira, foi perdoada, pois corajosamente invadiu a arena para abraçar o filho vitorioso.
            Por ser o clima muito seco e quente no verão e frio e úmido no inverno, Aristóteles, que foi discípulo de Platão e mestre de Alexandre, o Grande, sugere em um dos seus mais eruditos textos, “Os Meteorológicos”, que a ascensão e a queda de grupos políticos e militares da Grécia eram determinadas pelas mudanças do clima.
            Mas embora saibamos que o determinismo geográfico é uma teoria etnocêntrica, sentimos no ar um clima variante e sempre cheio de factóides e verdades na Sophia amapaense. O mercúrio fica dilatando e retraindo em todos os termômetros políticos; partidos e candidatos dançam a valsa dessa oscilação; o povo anda ofegante, na expectativa das decisões.
             É que vão começar as olimpíadas da política amapaense. Porém, quem apitará o primeiro jogo é o governador. Ele é o dono do apito e do cronômetro. Tudo depende de sua decisão, mas ainda não levantou o braço, apenas adverte os jogadores, dizendo que eles poderão ser penalizados se transgredirem as regras. A tensão é muito grande. Até as torcidas, na Ágora, reclamam, ainda que curiosamente não ofendam o árbitro. Os nossos atletas também estão nus, por enquanto despidos de suas vaidades. São gregos, troianos e bárbaros, ávidos para iniciar seus esforços. Mas não dá. O árbitro não apita, apenas olha o cronômetro.
            Mulheres, velhos e adolescentes levantam-se em “ola” na torcida. Parecem mais aborrecidos quando o locutor anuncia que haverá um “minuto de silêncio”. Então protestam. Ora, todos são cidadãos, não mais como na democracia grega.
            Finalmente parece que vai começar. Mas um relâmpago anuncia a trovoada, que vem seguida de um toró amazônico sem igual. O clima fica meio frio, a água alagou o campo. Todos vão embora junto com a luz, pois o sistema elétrico do local ficou danificado.

            No campo, entre a iluminação dos relâmpagos e raios, ficam os jogadores e o juiz, congelados, até o recomeço do jogo no dia seguinte. Mas só o juiz sabe que depois do jogo não poderá mais permanecer no mesmo cargo. Será um soldado ou um general nessa partida da cidadania.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

BURACOS

Disponível no blog De Rocha: eltonvaletavares.blogspot.com
Texto de Fernando Canto

Buraco do clécio, buraco do roberto, buraco do joão, buraco do barcellos, buraco papaléo, buraco do capi, buraco do azevedo, buraco dos indicados, buraco dos intendentes. Buraco do historiador, buraco do poeta, buraco do (e)leitor. Buraco fodido do povo.

Buraco de papel, buraco dos otários, buraco do orçamento, buraco do buraco, buraco do aeroporto, buraco de fraque e colarinho, buraco mercantil, buraco comunista, buraco balacobaco, buraco babaca imagina na copa. Buraco do dia, buraco da noite, buraco belle de jour. Buraco del culo de tu madre. Buraco do equador, buraco pélago do Bailique, buraco da preamar, buraco do tamanho do amazonas.

Buraco invisível, buraco olho de japonês lá no fundo do poção, buraco voyeur, buraco do coração partido, buraco da minha esquina, buraco do mecânico ricaço-novo, buraco enlameado, buraco lama gulosa, buraco condescendente, buraco homo, buraco hetero, buraco falo, buraco sexualmente transmissível, buraco aidético. Nenhum buraco é ético. Buraco de propósito, buraco amarelo, buraco vermelho, buraco verde, buraco azul, buraco negro.  Nenhum buraco é branco.

Buraco de dez metros, buraco do poço, buraco baixo, buraco largo, buraco sepultura, buraco celular, buraco zap-zap, faceburaco baco,  buraco kkkkk, buraco reflexo da lua, buraco aniversariante com bolo e a primeira fatia vai pra quem? Buraco titã, buraco voador, buraco que geme, buraco sindicalista, buraco grevista toda semana, buraco alcóolatra, buraco liamba, buraco ayahuasca, buraco tralhoto, buraco sugador, buraco candiru, buraco vulcão, buraco laguna, buraco igapó, buraco que ri da gente todos os dias de manhã.

Buraco da droga, buraco do noiado, buraco do palhaço, buraco da cachaça, buraco corrupto, buraco carnaval do sambódromo de pista escorregadia, buraco cem mil marcos zeros, buraco raio que o parta, buraco chove de baixo pra cima, buraco forró universitário, buraco tecnobrega, buraco quebra-canela, buraco hip-hop do mc, buraco funk rebola que eu quero ver, buraco pagode cada qual no seu quadrado buraco televisivo, buraco programa matinal de rádio, buraco musical desafinado que só ele. Buraco, buraco, buraco. Buraco do meio da tua bunda porque o meio do mundo está um buraco. Buraco ponto final.